Mouraria. Um itinerário de artes, histórias e sabores
Por Maria Espírito Santo
Guiados por Inês e Filipa, da Associação Renovar a Mouraria, passeámos pela Rota das Tasquinhas e Restaurantes que inaugura este sábado. Também conversámos com um sapateiro poeta, pouco depois de saborearmos o pastel que nasceu no bairro
São onze e meia da manhã mas a grelha já está quente. Na Adega Zé dos Cornos (Beco dos Surradores, n.o 5) começa-se a trabalhar às seis da manhã e a servir pratos antes do meio-dia. O cheiro a carne que chega da cozinha denuncia a casa, mesmo à entrada, de portas completamente abertas – aqui também se pode ouvir pedaços das conversas. Perto do balcão há uma espécie de montra das especialidades: os queijos de todos os tamanhos e feitios, dispostos aos triângulos, o presunto bem rosadinho e nas travessas também o chispe, a orelha, a asa de frango ou o rabo de porco. Zé dos Cornos ou Zé Carvoeiro, é mesmo assim que é conhecido o homem à frente da adega: “Aqui sinto-me bem, já cá estou desde 1955. No tempo do meu pai só se vendia carvão e petróleo, como agora já não se vende, a gente tem de inovar.” Mas isto não quer dizer abandonar a tradição. É escolher da longa lista, do polvo à lagareiro ao favorito entrecosto com arroz de feijão – e já agora o piripiri do Sr. Zé, mesmo à mão ali na mesa. São onze horas e quarenta e cinco e o cheiro já abre o apetite.
A Adega Zé dos Cornos é a nossa primeira paragem daquela que é uma pequena amostra da Rotas das Tasquinhas e Restaurantes da Mouraria. A iniciativa é da Associação Renovar a Mouraria, um projecto que começou a ganhar forma em 2007 quando alguns moradores decidiram reanimar o seu bairro. Desde então, o grupo cresceu e tornou-se numa associação activa, que prepara regularmente uma série de actividades e programas relacionados com a cultura, ou melhor, miscelânea de culturas. A rota, a inaugurar no sábado, é a mais recente novidade. 20 restaurantes e dez tascas (uma lista a crescer) estão agora sinalizadas, a garantir uma verdadeira volta ao mundo de sabores, à distância de alguns passos. Ainda: a partir de Setembro os espaços integrados deverão contar com uma animação regular, com os fados em grande destaque. Mas a comida é o ponto forte. Este sábado convida a isso mesmo, que a gente se reúna no Largo da Rosa, a partir das 19h45, para ir trincando as variedades de que é feito este bairro.
mouraria internacional Da Lisboa castiça à Goa quente vão algumas escadas e poucos passos. É na Rua de São Pedro Mártir n.o 23 que mora o Tentações de Goa, em tons de rosa, lilás e dourado forrado a fotografias de família em paisagens distantes. Foi o “amor, o coração” que levaram Maria dos Anjos, de 55 anos, a abrir este restaurante. Casada com um goês, costumava frequentar esta casa quando era apenas de petiscos. Foi quando ficou desempregada que virou dona do espaço, usou o dinheiro da indemnização para abrir um canto de Goa na capital. Na ementa há sarapatel (um prato com diferentes variedades de porco fritas) que é um dos mais morosos, são precisas sete horas o confeccionar. Assim como outros pratos goeses, se “bem acondicionado” aguenta durante vários dias – e até convém, para apurar os sabores. Caris de caranguejo, peixe, camarão ou frango também não faltam, assim como os xacutis. E Maria dos Anjos confessa-se fã do de cabrito. Para rematar, a bebinka, um doce que, tal como a maior parte da comida goesa, partiu de receitas portuguesas, especificamente de um doce conventual do Algarve. Que se desengane quem acha que os condimentos e picantes enjoam ao segundo dia. Há sempre comida goesa na mesa de Maria dos Anjos. Que até suspeita ser esta a receita para manter a juventude.
Pé fora de Goa para outra paragem. O Kabaz Grande, ao fundo da rua, recebe italianos que se deliciam com a cafriega, pernas de galinha com um tempero raro. As especialidades guineenses trouxe-as Gomes Júnior, de 48 anos, que decidiu abrir o espaço onde comida, futebol e convívio combinam bem. A siga ou o caldo mancara são outras palavras difíceis: sem medos, é só juntar ao arroz branco e saborear.
Pastéis e telemóveis Filipa Bolotinha, Inês Andrade e Nuno Franco formam o núcleo central da associação. De uma ponta à outra da Mouraria, Filipa e Inês distribuem sorrisos, beijos e outros cumprimentos, qual papa de visita. As ruas estreitas não as confundem, cada uma está sinalizada por caras e gentes que lhes são familiares. É assim que vamos parar à Doce Mila (Beco dos Cavaleiros n.o 15), até porque o corpo se queixa do itinerário. Para repor as forças há a especialidade da casa, o pastel da Mouraria. “É de feijão e amêndoa, todos os dias sai sempre uma fornada”, conta Licínio Guedes enquanto estende um pastel ainda quente, estaladiço por fora, cremoso por dentro. Tornou-se um símbolo gastronómico do bairro há pouco mais de um ano e até já estrangeiros vêm perguntar pelo pastel que, tal como o bolo rei, o pastel de nata e o pão de forma, é feito mesmo ali ao lado, na cozinha. Energias repostas e mais alguns passos, outras tantas histórias e subidas custosas para chegar à Rua dos Lagares n.o 78.
Sapatos, lixas ou vernizes: o local de trabalho de um sapateiro não tem por norma grandes mistérios. Isto se não for o Sr. Baguinho.
Tem 78 anos e 70 como sapateiro. Aprendeu o ofício quando era criança e pelo meio foi-se aplicando noutras artes. Na escola História era paixão, mas também não lhe faltava jeito para as palavras. “Quem nesta casa entrar, observe com atenção, depois de ver e pensar, dê a sua opinião.” Este é apenas um dos muitos versos coloridos que se juntam a fotografias antigas e cobrem as paredes da pequena sala de Fernando Baguinho. O poeta popular da Mouraria guarda dossiês de imagens e palavras coloridas num registo particular da história do país e do bairro.
O salto do tradicional para o moderno também se faz, desta vez na descida. A Faisal Acessórios (Rua do Bem Formoso n.o 151) tem todas as peças, carregadores e baterias para telemóveis (sim, também e principalmente da marca mais na moda). É também a solução milagrosa para telemóveis e computadores mal tratados: seja de uma queda, um copo de água ou outro desastre semelhante, se não conseguir arranjar aqui não o consegue noutro lugar. Faisal Ali, de 35 anos, rodeado de pequenas peças num cemitério de tecnologia, é o cirurgião certificado que faz as magias que aprendeu em cursos especializados entre o Paquistão e a Alemanha.
Mas de que é que estávamos a falar mesmo? De comida? Pedimos desculpa, caímos na distracção – mas essa, por estas ruas, também é boa de provar.
Mais info:
www.renovaramouraria.pt