sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Em desillusão e poeira.

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No Museu da Cidade, o original da estátua de Eça de Queiroz.
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Não há manto diáfano de fantasia que cubra a nudez forte desta verdade.
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Vandalizada consecutivamente quando se encontrava no Largo Barão de Quintela, fronteiro ao Palácio Quintela-Farrobo, à Rua do Alecrim, a estátua de Eça de Queiroz foi substituída por uma réplica em bronze. O original em mármore, da autoria do escultor Teixeira Lopes, encontra-se actualmente ao abandono, lançado num canto no jardim do Museu da Cidade. No chão, o busto de Eça. Ainda o apanhamos?
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Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:

- Falhámos a vida, menino!

- Creio que sim...

Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é falha-se sempre na realidade aquella vida que se planeou com a imaginacão. Diz-se: «vou ser assim, porque a belleza está em ser assim». E nunca se é assim, é-se invariavelmente assado, como dizia o pobre marquez. Ás vezes melhor, mas sempre differente. Ega concordou, com um suspiro mudo, começando a calçar as luvas.
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- E que somos nós? exclamou Ega. Que temos nós sido desde o collegio, desde o exame de latim? Romanticos: isto é, individuos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão...
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Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que se dirigiam só pela razão, não se desviando nunca d'ella, torturando-se para se manter na sua linha inflexivel, sêccos, hirtos, logicos, sem emoção até ao fim...

- Creio que não, disse o Ega. Por fóra, á vista, são desconsoladores. E por dentro, para elles mesmos, são talvez desconsolados. O que prova que n'este lindo mundo ou tem de se ser insensato ou semsabor...

- Resumo: não vale a pena viver...
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Riram ambos. Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua theoria da vida, a theoria definitiva que elle deduzira da experiencia e que agora o governava. Era o fatalismo musulmano. Nada desejar e nada recear... Não se abandonar a uma esperança - nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquillidade com que se acolhem as naturaes mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, n'esta placidez, deixar esse pedaço de materia organisada, que se chama o Eu, ir-se deteriorando e decompondo até reentrar e se perder no infinito Universo... Sobretudo não ter appetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.
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Ega, em summa, concordava. Do que elle principalmente se convencera, n'esses estreitos annos de vida, era da inutilidade do todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na terra - porque tudo se resolve, como já ensinára o sabio do Ecclesiastes, em desillusão e poeira.
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- Se me dissessem que alli em baixo estava uma fortuna como a dos Rothschilds ou a corôa imperial de Carlos V, á minha espera, para serem minhas se eu para lá corresse, eu não apressava o passo... Não! Não sahia d'este passinho lento, prudente, correcto, seguro, que é o unico que se deve ter na vida.
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Nem eu! acudiu Carlos com uma convicção decisiva. E ambos retardaram o passo, descendo para a rampa de Santos, como se aquelle fosse em verdade o caminho da vida, onde elles, certos de só encontrar ao fim desillusão e poeira, não devessem jámais avançar senão com lentidão e desdem.
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5 comentários:

ana v. disse...

Grande reportagem! Parabéns.

Daniel disse...

Muito curiosa a reportagem, os meus parabéns também.

Miffy disse...

Estive no Museu da Cidade recentemente, e a estátua de Eça da reportagem, já está, felizmente montada - tal e qual como a conheci no seu local inicial, perto da Rua do Alecrim e, com toda a dignidade devolvida :)

Joaquim Moedas Duarte disse...

Excelente! Muito interessante.
Gostei!

Carlos Medina Ribeiro disse...

Em 2007, este mesmo assunto foi abordado em vários blogues, dando origem a uma reportagem de «A Capital» - ver [AQUI].