segunda-feira, 6 de julho de 2009

Adeus.


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O «Senhor do Adeus», de seu nome João Paulo Serra, é uma conhecida figura típica lisboeta, das últimas. Nos últimos tempos, tem deixado de estar no Saldanha e na Fontes Pereira de Melo, resguardando-se nas proximidades da sua casa, no Restelo. No entanto, muitos foram os que procuraram conhecê-lo. A blogosfera não lhe disse adeus. Há notícias, filmes, comentários. Já apareceu em programas de televisão e de rádio.
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Em 2005, o blogue «E se tentarmos?», mostrou-o assim:
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Para quem não o conhece, é imperativo passar no Saldanha por volta das 23h e desfrutar de um momento que já faz parte da “nossa” cidade! Como é possível um simples gesto proporcionar um momento, apesar de um pouco “estranho”, agradável para quem passa... afinal se não fossem estas “pequenas” diferenças, a vida seria sempre igual... O homem que diz adeus. É ele o homem que noite após noite acena aos carros que passam na Avenida Fontes Pereira de Melo, em Lisboa. É por ele que tocam as buzinas, que se atiram beijos e sorrisos, que se gritam «boas noites!» e «adeus!», numa «onda de comunicação» que já dura à três anos e que nem se sabe explicar muito bem como começou. Numa cidade de estranhos em mundos fechados este é o seu «milagre». E é também o seu remédio. Há quem lhe chame o «senhor do adeus». Mas «senhor» é coisa que detesta que lhe chamem. Aos 72 anos, João Paulo Serra tem a inocência de uma criança, o espírito de um jovem, mas o olhar nostálgico de um ancião que sente «ter aprendido com a vida tarde demais». A sua roupa clássica e a ondulação do cabelo grisalho disfarçada com gel, dão-lhe um ar meio aristocrático, que já faz parte da paisagem do Saldanha. Todos o conhecem e quem trabalha nas redondezas sabe o seu percurso de cor. «Chega por volta das onze, meia-noite... Começa pela zona do Monumental, vai descendo a rua até ao Marquês e depois sobe, parando sempre em pontos estratégicos. Nunca falha.». Arménio é chefe de mesa na marisqueira Maracanã e já lhe serviu alguns jantares. «É muito simpático. Quando passa aqui, acenamos-lhe pela janela. Só não sei: porque é que faz isto?» .João começa por dizer que não sabe bem, mas, a pouco e pouco, interrompendo sempre para acenar, vai desvendando o mistério. Tudo começou há três anos e meio, depois da morte da mãe, com quem vivia. Precisava de se distrair, incomodava-o a ideia de estar sozinho em casa. Um dia, aconteceu. Já reparara que as pessoas o cumprimentavam sem razão, nos centros comerciais e, sem saber como nem porquê, surgiu o primeiro aceno na estrada. Depois veio outro e outro, e o caso virou fenómeno. «No início era só rapaziada nova, mas depois contagiei todo o tipo de gente», explica sem esconder um certo orgulho. Graças ao seu «milagre», já deu entrevistas para a televisão e para os jornais, apareceu em dois filmes e até num teledisco. «Sempre quis ser actor mas nunca me deixaram...». Ou nunca teve coragem de tentar. Algumas dezenas de acenos mais tarde, já não é um João risonho e despreocupado, «com imensos amigos» com quem vai «ao teatro e ao cinema», que fala por detrás dos óculos de massa negra. Nos olhos cinzentos, estão duas lágrimas contidas. Pelo passado, pelo presente e por um futuro que não chega. Com um raciocínio de fazer inveja aos mais novos, o louco, o excêntrico, transforma-se lentamente num avô contador de histórias, que lê Agatha Christie para combater o medo ao andar de avião, que não tem telemóvel porque detesta máquinas e que não vê televisão. João nasceu no seio de uma família nuito rica. Até aos dez anos, viveu num enorme palacete da Tomás Ribeiro, cobiçado mesmo pelo próprio Gulbenkian. «Que saudades tenho desse tempo... A casa estava sempre cheia de família e amigos...». Mimado desde bebé, fez a instrução primária toda em casa, com um professor particular, pois no primeiro dia de aulas no Colégio Parisiense chorou tanto que os pais não tiveram coragem de o mandar de volta. «Fui criado numa redoma de vidro», confessa, explicando: «Naquela época era tudo muito diferente, havia muitos tabus.». Depois do divórcio dos seus progenitores, quando tinha 13 anos, João foi morar para o Restelo com o pai. Por ele, inscreveu-se em Direito, mas depressa desistiu, «era muito chato». Depois de uma igualmente curta passagem pelo curso de Histórico-Filosóficas, o pai, «que não sabia que fazer» com ele, mandou-o para Londres com o irmão. «Foram três anos fantásticos. Tinha um grupo de amigos fabuloso, com quem viajei imenso. Teria lá ficado, se não fosse tão agarrado à família...». Sem quase pôr os pés nas aulas, regressou a Portugal e, depois da morte do pai, pouco tempo depois, foi morar com a mãe, de quem não se separou até ao último dia da sua vida. «Viajámos muito os dois. Todos os anos íamos a Paris e Madrid. Conheço a Europa inteira, excepto a Grécia...».E o olhar perde-se num momento só dele, como se pensasse alto. Quando a mãe morreu, «ficou desasado». E talvez por isso esteja todas as noites a «comunicar». Admite que o que faz «não é muito normal», mas não passa sem isso. É o remédio que lhe permite disfarçar a solidão que o consome e o faz olhar para o passado com arrependimento, por não ter ousado viver a sua vida em vez da dos outros.«Ás vezes penso que foi tudo inútil...». No baú dos sonhos perdidos, jaz o curso que não tirou, o trabalho que nunca fez, os filhos que não teve e, pior, o grande amor que nunca conheceu. «Sinto-me só. Incompleto. Como se algo estivesse a falhar.». E assim lacrimeja quando vê um casal idoso de mãos dadas, ou quando dois rapazes, que diz «reconhecer do subconsciente», param o jipe para tirar uma fotografia com ele.«Encontramo-nos no céu», repete, aludindo ao que um diplomata ucraniano lhe disse uma vez. O homem do lixo atira-lhe o derradeiro aceno da noite.
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Também em 2005, Carlos Moura, no seu blogue pessoal, falou dele:
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Na praça do Saldanha, em Lisboa, costuma estar à noite um senhor idoso junto aos semáforos. Bem vestido e com bom ar, faça chuva ou faça sol, este senhor de cabelos brancos tem um passatempo particular: gosta de dizer adeus aos carros. Não é doente, não é louco, apenas gosta de dizer adeus aos carros. Quem já falou com ele sabe que é lúcido e simpático. E não se importa que lhe chamem maluco. Gosto do senhor que diz adeus. Ele sabe que o mundo está ali todo, a passar em frente, veloz. E acho que lhe diz adeus porque tem uma certeza: ele fica, os outros vão. E o mundo é mais bonito quando temos certezas. Quando sabemos para onde vamos e para onde vão os outros.Naquele breve instante em que alguém lhe buzina e ele retribui com um aceno, as coisas fazem mais sentido. Naquele breve instante, há dois amigos. Gosto do senhor que diz adeus. E acho que, mesmo sem me conhecer, ele também gosta de mim, porque continua a sorrir e a dizer-me adeus como quem diz- Boa viagem, eu fico aqui.E amanhã eu sei que ele está lá.E ele sabe que o resto do mundo vai continuar a passar por ali e que as coisas vão continuar a fazer sentido. A vida assim é simples. E mais bonita.
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A experiência mais curiosa foi a de Filipe Melo e Tiago Carvalho, que todos os domingos o levaram ao Cinema Monumental, e dele fizeram crítico cinematográfico, num blogue curiosíssimo a ele exclusivamente dedicado: http://senhordoadeus.blogs.sapo.pt/
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Em 2008, o blogue «Aroma de Amora» também falou dele:
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Há personagens que fazem parte da nossa vida sem que com elas tenhamos trocado uma só palavra. Habituamo-nos à sua presença e são como que património da nossa vivência. Hoje apeteceu-me falar de uma destas personagens. Há já muito que lhe quero dedicar um post e hoje resolvi finalmente fazê-lo. Escolhi-o porque passo por ele todos os dias e porque é suficientemente carismático para me roubar algumas palavras escritas. Esta personagem soube atribuir a um corriqueiro gesto do quotidiano, um significado especial e misterioso, levando-nos a pensar que tipo de vida se esconde por detrás de um aceno. A personagem de que falo é o “senhor do adeus” uma personagem que os lisboetas conhecem e que, todos os dias desde há alguns anos, se dirige para as zonas do Saldanha (à noite) e Restelo (ao final da tarde) para acenar ininterruptamente, e sempre com um sorriso pueril nos lábios, para os carros que passam. Este ritual obsessivo, tem tanto de enigmático como de desconcertante, e se não fosse tão real poderia julgar tratar-se de um verdadeiro mito urbano. Eu devolvo-lhe sempre o aceno e por perceber que o faço feliz, sinto-me também eu feliz. Afinal de contas, assistir à alegria dos outros faz-nos ficar contagiados por ela. Tal como eu, também os outros carros que passam se envolvem neste ritual. E é ver todos os seus ocupantes a buzinar-lhe, com braços de fora em explícitos acenos acompanhados de uma remessa de beijos e de sorrisos. O “senhor do adeus” é na realidade um senhor originador de bons afectos. E há contentamento nos seus olhos quando as pessoas manifestam esses mesmos afectos. O “senhor do adeus” comove-me pela sua preserverança, pela simpatia que despoleta em quem passa e por emanar aquela dose de loucura que o faz estar envolto em mistério. Falo de um senhor que parece retirado de um filme dos anos 50, com uma figura que só por si não passaria indiferente, alto, esguio, de cabelo ondulado todo branco, com óculos de massa preta e porte aristocrático. Depois de muito tempo a recorrer somente à minha imaginação para reconstruir a sua história de vida, descobri recentemente que o “senhor do adeus”, que afinal prefere ser chamado pelo “senhor do olá” se chama na realidade João, tem 76 anos de idade e o seu motivo para elevar o aceno a uma forma de vida, é a solidão com que se deparou há uns anos após a morte da sua mãe. Sente que acenar é a forma de comunicar e de sentir gente. Por trás daquela figura alta e esguia de trajes clássicos mas marcantes, esconde-se alguém que fez deste périplo a sua razão de existir e tornou a sua pessoa num ícone da cidade de Lisboa. A mim mostrou-me que um simples aceno tem a capacidade de me pôr bem disposta.
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Recentemente, Pedro Miguel Silva voltou a encontrá-lo:
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Esta “missão” começou há sensivelmente nove anos, depois da morte da mãe, com quem vivia. Precisava de se distrair e incomodava-o a ideia de estar sozinho em casa. Um dia, aconteceu! Já reparara que as pessoas o cumprimentavam sem razão nos centros comerciais e, sem saber como nem porquê, surgiu o primeiro aceno na estrada. Depois veio outro e outro, e o caso virou fenómeno. Quem o quiser ver a acenar e cumprimentar, basta deslocar-se aos seus locais de “trabalho”: o topo da Avenida da Torre de Belém ou o Largo do Saldanha. Enquanto que no topo da Avenida da Torre de Belém o pode encontrar todos os dias de semana, de segunda a sexta, das 18h às 20h, e sem qualquer folga, já no Saldanha é mais complicado, uma vez que não tem hora certa de lá estar! E entre muitas buzinadelas e acenos, aceitou contar-nos a sua história, apesar de confessar que não sabe bem como tudo começou: «Começou já há muitos anos, depois de a minha mãe ter falecido, passei a andar mais na rua sozinho. Começou em certos sítios: no Centro Comercial das Amoreiras e no Colombo». «Rapaziada, pessoas simpáticas que não sei porquê, uma empatia talvez qualquer que haja que eu não sei explicar, não sei explicar mesmo...e que realmente começaram a acenar ou a dar as boas noites, boas tardes e isso tudo...e eu comecei a achar que realmente estava a tomar um certo incremento fora do vulgar. Quer dizer, também talvez tenha ficado um bocado promovido porque pouco depois de eu ter começado a fazer isto, uma equipa da televisão e o jornalista Luís Osório, muito conhecido e muito bom, que estava a fazer um programa na RTP2 [e] que era o Zapping. Faço isto não é para me exibir, para me promover... Faço isto porque gosto de estar na rua, é na rua que eu gosto de estar. Estar a acenar às pessoas e a ter esta comunicação.» João nasceu no seio de uma família muito rica. Até aos dez anos, viveu num enorme palacete da Rua Tomás Ribeiro, cobiçado mesmo pelo próprio Gulbenkian: «Que saudades tenho desse tempo... A casa estava sempre cheia de família e amigos...». Mimado desde bebé, fez a instrução primária toda em casa, com um professor particular, pois no primeiro dia de aulas no Colégio Parisiense chorou tanto que os pais não tiveram coragem de o mandar de volta.«Fui criado numa redoma de vidro», confessa, explicando: «Naquela época era tudo muito diferente, havia muitos tabus.». Depois do divórcio dos seus progenitores, quando tinha 13 anos, João foi morar para o Restelo com o pai. Por ele, inscreveu-se em Direito, mas depressa desistiu por ser «muito chato». Depois de uma igualmente curta passagem pelo curso de Histórico-Filosóficas, o pai, «que não sabia que fazer» com ele, mandou-o para Londres com o irmão: «Foram três anos fantásticos. Tinha um grupo de amigos fabuloso, com quem viajei imenso. Teria lá ficado, se não fosse tão agarrado à família...». Sem quase pôr os pés nas aulas, regressou a Portugal e, depois da morte do pai, pouco tempo depois, foi morar com a mãe, de quem não se separou até ao último dia da sua vida: «Viajámos muito os dois. Todos os anos íamos a Paris e Madrid. Conheço a Europa inteira, excepto a Grécia...».Isto do dizer adeus é coisa séria para o “Ti João” e quer faça chuva, quer faça sol, ele lá está…: «Não gosto de faltar a este meu hábito que me faz tão bem, não é? Não é um emprego, é uma ocupação, porque...é muito bom para mim porque, já vê...também não é tudo rosas e também tenho os contras, que é, por exemplo, a minha idade já...aguentar o Inverno, não é? O frio, porque tenho de me agasalhar muito... Se está a chover é uma chatice! Eu prefiro o frio à chuva, porque agasalho-me muito para o frio e não, e pronto… Agora chuva é muito chato, estar com o chapelinho de chuva...é claro, se for aquela chuva torrencial também tenho que me abrigar e isso tudo. Mas, de contrário, já estou habituado, sabe, já estou habituado a isso tudo. De maneira que já…já aguento um bocado, realmente, o Inverno…Tenho aguentado este Inverno, que foi tão frio, tão rigoroso, não é…».E nem quem o considera maluco o afecta... : «Às vezes há uma ou outra pessoa ordinária que pode dizer: “maluco”, ou isto, ou aquilo… Como sou compensado pela grande maioria das pessoas que me saúdam de uma maneira muito bonita, estou me nas tintas para esses tipos, completamente! Uma pessoa de 78 anos, que está metida em casa só a ver televisão e de pantufas…é muito chato, não é?… Portanto, assim, eu mexo-me, faço exercício, tomo ar, comunico…para mim é um remédio, pronto, não podia ser melhor.»É o remédio que lhe permite disfarçar a solidão que o consome e o faz olhar para o passado com arrependimento, por não ter ousado viver a sua vida em vez da dos outros. No baú dos sonhos perdidos, jaz o curso que não tirou, o trabalho que nunca fez, os filhos que não teve e, pior, o grande amor que nunca conheceu:«Sinto-me só. Incompleto. Como se algo estivesse a falhar.»
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2 comentários:

Marota disse...

Um beijinho da Alemanha para o Senhor do Adeus...

Mig disse...

RIP