Castelo de São Jorge, lugar de eterno retorno às nossas ancestrais raízes. A Nação mais velha da Europa. Um frémito patriótico percorre todos os Portugueses que se acercam das velhas muralhas, imorredoura amálgama de pedras seculares, do suor da arraia-miúda da Idade das Trevas e do cimento armado da Exposição do Duplo Centenário.
Da torre de menagem, altaneira e nobre, a rudeza chã das pedras de antanho permite entrever, por entre ameias e seteiras, que algo de muito importante está prestes a acontecer. É tempo de Cultura.
É tempo de Cultura. É Templo de cultura. A Cultura do Templo. Uma grandiosa co-produção luso-madeirense, com o apoio da Sony Corporation e da Junta de Freguesia do Socorro. «A Iniciação do Templário». Reza o pergaminho que serve de cartaz que existirá uma «Revelação dos Mistérios!». Além do acidente rodoviário que vitimou John Fitzgerald Kennedy e da eterna controvérsia teológica em torno do dogma da virgindade de Elsa Raposo, o único mistério que queríamos mesmo ver resolvido era o de saber quem é o responsável por esta cena de levar à cena uma cena destas no Castelo de São Jorge. Nesta despretenciosa reportagem, tentaremos obter uma resposta cabal para mais uma nacional cabala.
Para descomprimir da enorme tensão que sempre antecede os grandes momentos da nobre arte de Talma, quando até os mais experientes actores aguardam com ansiedade as compassadas pancadinhas de Molière, desejando-se mutuamente sorte através das indíziveis palavras de Cambronne, estes dois jovens embrenham-se numa querela de natureza genealógica sobre a linhagem de Dom Amadeu Gaudêncio.
Luís Miguel Sousa Cintra, o encenador, dá os últimos conselhos à equipa que criteriosamente escolheu. Os melhores, nada menos do que isso. Os melhores vão entrar em cena. Ei-los:
Sim, já o conhece. Não perca tempo nem gaste os neurónios que o Doutor Damásio lhe ofereceu. Não se dilacere com perguntas do tipo «onde é que eu já vi esta cara?» ou «este rapaz é o sobrinho do Marques do 3º Esquerdo?». Não perca tempo: Paulino Santos é contactável de segunda a sexta na caixa nº 37 de um lugar perto de si, o supermercado «Pingo Doce» da Rua da Graça. Tendo obtido a licenciatura em Filologia Germânica na Faculdade de Letras da Universidade da Beira Exterior, as contingências dessa fatal opção de vida obrigam-no a redimir-se de um desvario de juventude aos comandos da caixa nº 37 do Pingo Doce da Graça. O doce Paulino vive com os pais, pois só assim consegue fazer face àqueles dias difíceis do mês, que geralmente começam a 19 e se prolongam até 30, quando não 31, dia de fazer a caixa dos caixas da cadeia alimentar «Pingo Doce». Mas Paulino não desiste, é um lutador. E tem uma paixão secreta, razão de sua existência terrena: a arte de representar.
No fundo, e para atalhar conversa, diremos já que o ritual de iniciação de um Templário não difere muito dos rituais de acasalamento da vida selvagem que todos os dias o serviço público de televisão faz gala em nos meter casa adentro, mesmo à hora das refeições, mesmo à hora em que os miúdos ainda não foram para a cama. E depois a gente é que lá fica em trabalhos para explicar a um garoto de 5 anitos o que é que o porco está a fazer em cima da porca, o gafanhoto em cima da gafanhota, o cachalote pedófilo em cima da baleia-anã e assim por diante.
Sentindo-se assediado por um candidato a Templário trajando de azul-eléctrico, o Gorila, com os olhos raiados de pânico, busca o derradeiro auxílio na mui esbelta figura do Grão-Mestre da Ordem.
O público, atento, observa a cena. Três espectadores para quinze figurantes (o desempenho leva-nos a crer que se trata de uma companhia teatral de figurantes, cuja qualidade dispensa o recurso a actores). Repetimos: 3 espectadores / 15 figurantes. E perguntamos: com um 3 a 15 destes, autêntico jogo de râguebi tipo Centro de Dia de São Nicolau vs. Selecção Nacional da Nova Zelândia, como poderá o Teatro de Pesquisa sobreviver entre nós? Sem «apoios» (leia-se: fundos perdidos para perdidos nos fundos), como resgataremos as tradições de um Garrett, de um Gilles Vicente, de um Gil Deleuze, de um Camilo Oliveira e de tantos outros e grandes dramaturgos portugueses? Para as obras públicas e para o betão, nunca falta. Para a Cultura, 3 a 15. Nestas condições, como é possível educar e fidelizar públicos? Lisboa SOS quer aqui manifestar a sua pública homenagem àqueles que ainda não baixaram os braços no mundo da Cultura e da Arte. A nossa palavra de estímulo: não baixem os braços; mantenham-se de braços levantados. E de mão estendida.
Prossigamos, que a função também prossegue. O público, como se vê, é constituído por um pacato casal de meia-idade, dos arredores de Leiria, acompanhado da sua mais nova, tão encalhada em termos de perspectivas matrimoniais como o saudoso navio «Tollan», memória irremovível de todos
les amants du Tage.
Nas escadarias, o chanceler lê o «script» da Iniciação Templária. Num velho pergaminho, sobre o qual existem as mais desencontradas e conspirativas teorias, as palavras cifradas da linguagem templária. Ninguém percebe. Dizem que é uma espécie de Inglês Técnico.
O ar estupefacto da assistência evidencia a sua pouca proximidade ao Inglês Técnico. Adicional prova de que é necessário levar a Cultura a mais gente, conquistar públicos, criar um sobressalto cívico que nos coloque a par da Finlândia. E, de facto, alguns trechos da Iniciação Templária apresentam claras similitudes com a cultura finlandesa: o despojamento das formas (= guarda-roupa de opereta, adquirido meia-hora antes no Mundo do Calçado e na Decathlon de Alfragide), a imperceptibilidade do linguajar, o hermetismo dos gestos. Bem, sem entrar em mais especulações: o nosso trio de Leiria pergunta e pergunta-se sobre o custo-benefício desta opção cultural. O tema promete aceso debate no carro, de regresso a casa. Para abreviar: foi a patroa que quis ir ao teatro. Mas quem pagou as entradas foi o que tem bigode. Adivinha-se alguma controvérsia.
Claramente em apuros, o nosso martirizado primata procura recordar-se dos tempos em que via as irmãs subirem às àrvores. Ele não, sempre preferiu vestir-se de marujo de Brest, entregando-se à leitura de
Modas & Bordados. Agora, vê no que deu, Carlos Jorge. Não subas depressa, não.
Desejoso de ser iniciado, o nosso pré-candidato a Templário (ainda faltam os psicotécnicos e a entrevista) exibe garbosamente a sua cabeleira afro-metálica.
Durante o desenrolar da peça, nem a porcaria do machado que está no chão nem aquele pano branco enrolado à árvore vão alguma vez ser utilizados. Podemos assegurá-lo. Que passou pela cabeça do aderecista?
O chanceler prossegue a monótona leitura do Tratado dos Deveres do Templário. Um finíssimo pergaminho medieval, com iluminuras d'ouro, processado em Times New Roman, tipo 14.
O vasto público continua desconcertado com a leitura do velho pergaminho. E, mais ainda, com o preço que pagou pelos bilhetes. Mas, já que aqui estamos, fica-se até ao fim. Pode ser que isto anime e que o miúdo se meta mesmo em cima do chimpanzé.
Crê-se que nesta altura se entrou já no Anexo k-47 do Tratado dos Deveres do Templário.
Entretanto, nos jardins, Dona Kátia Guerreira, activista dos direitos dos animais, procura dissimular a dor que lhe atravessa a alma. Do mesmo passo, aproveita a proximidade do poço para resolver outra questão do seu mundo interior: o problema da aerofagia. Kátia é hospedeira dos comboios Alfa Pendulares e, como ouviu dizer que esse é um mal que aflige todas as hospedeiras, decidiu também abraçar a carreira da flatulência. A nobre filha do conde de Trava é flatulente em várias línguas, incluindo o finlandês das pautas de Sibelius e o Inglês Técnico imortalizado em
Finnegan's Wake.
Aparentemente, a iniciação consumou-se. Não mostramos imagens, por respeito pela reserva da intimidade da vida privada a que os gorilas também têm direito. Mas, se dúvidas houvesse, o erguer desta taça dissipá-las-ia. A brincar, a brincar, como dizia o outro.
Sempre meticuloso e perfeccionista, o encenador observa atento o desenrolar do drama, reparando nos mais ínfimos detalhes do desempenho de seus pupilos. É esta a atenção aos pormenores que faz a diferença. O movimento dos actores, sobretudo, é um ponto fundamental.
O novel Cavaleiro cometeu uma proeza: ficar na mesma posição durante todo o desenrolar da peça. Não se mexeu um milímetro. Mas, pela calada, lá conseguiu entender-se com o macaco. O qual, como se vê na imagem, se encontra prostrado junto à árvore centenária.
Uma vista geral dos bastidores.
Estas imagens da Torre de Ulisses não integram a produção. Mas, já que as tínhamos aqui, vai de carregá-las para os nossos leitores. É que tudo o que escrevamos nesta reportagem ficará sempre aquém, muito aquém, da graça que resulta desta coisa a que os cronistas de outrora chamavam de «Torre de Ulisses».
O certo é que da Torre de Ulisses, que em boa hora a Câmara Municipal instalou numa das torres do Castelo de São Jorge, é possível ter uma visão privilegiada do espectáculo. Os preços, no entanto, não estão ao alcance de todos. Em Portugal, lamentamos dizê-lo, a Cultura (com «C» grande) continua a ser um feudo de alguns. Quanto a feudalismo, avançámos pouco desde que foi construído o Castelo de São Jorge.
Mais aliviado após ter passado incólume o 1º acto, o Gorila procura conselho junto do Conde de Trava. Este, um tudo nada vaidoso, prefere verificar o «rimmel», como a imagem o documenta.
Para não darem mais troco ao macaco, quer o Senhor Conde de Trava, quer seu dedicado pagem fingem mergulhar na leitura de «Português Suave», de Margarida Rebelo Pinto. Obra que, como o «Ulisses» de Joyce, toda a gente tem em casa mas NINGUÉM LEU.
Conformado ao destino que o «script» lhe reservou, o Gorila optou por ir às boas. Prepara-se para o efeito, a ter lugar no 2º acto.
Mas a vida é uma caixa de surpresas. Abraçando a carreira de transformista, para evitar uma participação mais dolorosa na Iniciação do Templário, o nosso símio decidiu...
... optar pelos caminhos de uma carreira eclesiástica, tomando ordens menores. Por agora, aqui o vemos a tomar o trajo menor das ordens.
Mas aqui está ele convertido já num humilde frade. O que os macacos fazem para se livrar da Iniciação Templária é realmente inacreditável.
Agora, segundo a imagem o sugere, pretendia Frei Bartolomeu tomar ordens com o Conde de Trava. Esquecendo-se que ainda há instantes não passava de um macaquinho metido em apuros. A isto chama-se evolucionismo.
Colocado o capuz fradesco, tal como recomendado pela Organização Mundial de Saúde, eis Bartolomeu preparado para prosseguir este drama gótico.
É chegada a cerimónia do baptismo templário. Como não estavam a perceber nada, os espectadores fizeram o que se impunha: chegaram-se à frente. É algo muito frequente entre os Portugueses, sobretudo no visionamento de acidentes rodoviários. Desde a Idade Média, somos assim. A isto chama-se atavismo.
Sim, claro, também há outra razão de peso: dois dos figurantes não puderam vir, encontrando-se detidos no âmbito da «Operação Furacão». In aperto, o senhor encenador persuadiu os espectadores a servirem de padrinhos. «Mas a gente estamos assim vestidos, não se vai notar?», tentou eximir-se o pai (de bigode, na foto). Recorrendo aos mais finos dotes da escolástica medieva, os argumentos do senhor encenador foram imbatíveis: primo, só eles é que estavam a assistir, portanto ficava tudo entre amigos e os miúdos eram gente séria; secundo, o resto da malta também estava vestido com uns balandraus que não lembram a ninguém, que o macaco não era para ser macaco mas era o único fato que lá havia na loja do chinês, etc.; tertio, isto é daquelas cenas da arte performativa dos anos 60 e dos teatros em que o público participa, como quando o meu amigo vai à bola e chama nomes ao àrbitro e tal; quarto, o senhor espectador tem bigode e eu, o senhor encenador, tenho bigode e família de ao pé de Leiria, e a sua filha também aloura o buço e, portantos, vamos tratar isto como os fidalgos lusitanos de outras eras, isto é, ao desenrasca. Contrafeitos, os padrinhos aceitaram. O pater familias, algo desconfiado, temeu que a sua generosidade trouxesse novo encargo financeiro ao orçamento doméstico (o que não veio a suceder, apurámos junto da produção).
Este também esteve o tempo todo paradinho, sem mexer uma pálpebra. Disseram-nos ser estagiário da companhia teatral, a recibos verdes. As coisas que uma pessoa tem de fazer para entrar nos quadros da Função Pública... Na Idade Média, lá diz Herculano, não havia esta precariedade dos vínculos laborais. E os servos da gleba, rezam as crónicas, tinham direito a 12º e 13º.
Prossegue o baptismo do jovem grumete.
Os padrinhos, agora mais compenetrados. São novas responsabilidades para uma família de classe média. Dos arredores de Leiria.
Um tudo nada mais aliviada da maleita que consigo trazia, Dona Kátia Guerreira acercou-se do centro do palco, mantendo a reservada postura que é própria das pré-candidatas ao Concurso «Miss T-Shirt Rasgada», na discoteca Valentina, concelho do Feijó.
As imagens documentam que ele há coisas do foro da flora intestinal que são assim como que contagiosas. Mal Dona Kátia se aproximou, um jovem pagem foi acometido de um doloríssimo problema gástrico, em tudo semelhante ao que até há pouco dilacerara o ventre da nobre e gentil Senhora.
Isto já estamos por momentos fora da peça. É mesmo «vida real». O Sandro estava mesmo muito mal. Não o apertem, rapazes!, parafraseando o Presidente-Rei, Sidónio Pais de seu nome.
Tá tudo bem contigo, Sandro? Podemos continuar?
Para celebrar a iniciação de mais um Cavaleiro da Ordem do Templo, as bases do PSD promoveram novas «directas». «O pessoal é jovem, curtimos bué de fazer directas e de ir para o Guincho com uma viola, uma fogueira, sei lá, partir umas gajas», disse-nos Dom Luís Santana Menezes.
Os barretes laranja, vindos ainda da «Universidade de Verão» da JSD, acabaram por dar uma conotação político-partidária a este acto de Cultura. Era escusado. A promiscuidade entre Política e Cultura tem de acabar em Portugal. E, segundo temos vindo a estudar, não consta que qualquer membro da Ordem do Templo perfilhasse a ideologia social-democrata. Houve um, em tempos, na Suécia, mas já acabaram com essa heresia nórdica.
Ei-los, tão divertidos, a procurarem justificar o «cachet» de 3 €/hora. O que está sentado, como se vê, está divertidíssimo. Pudera. Só leva 2 € à hora. Está lixado como o raio.
A animação prossegue. É desta que a JSD vai defender a legalização das drogas duras e do major Valentim Loureiro.
Acompanhemos o trabalho de Cintra. São muitos anos de teatro:
Muito satisfeito com a adesão do público, o encenador concentra-se a observar o trabalho dramatúrgico das suas tropas. Quanto a espectadores, a aposta está ganha. Deixa-me lá ver então se os putos atinam com as marcações e as deixas.
Mais retrógrados, os menestréis, contratados num Centro de Trabalho do PCP, seguem a intransigente linha do Partido em matéria de costumes. É com um olhar reprovador que observam a cena. Hoje à noite, é certo como o destino estar um relatoriozinho desta pouca-vergonha na Soeiro Pereira Gomes. Para evitar atritos, o encenador Cintra convidou-os a abandonarem o palco. «Se não estão a sentir a personagem, assim tipo Actor's Studio, vão-me mas é lá para dentro, andor».
Como acontece em qualquer grande produção, 99,9% do trabalho não se vê. Para cinco segundos saírem na perfeição, são necessárias muitas horas de trabalho.
Muito gosta Dom Segismundo de se pôr mais à vontade. Pronto, já vai de «trussos» outra vez.
«Rapazes, então fazemos ou não fazemos o "Rei Lear" em Vendas Novas? É pá, preciso de saber quantos vão para comprar mais ou menos folhados de salsicha».
«Dona Kátia, bela princesa, sentireis o mesmo odor a Lisboa do que eu, o dono de teu coração?»
Poupem-nos à cena da cueca medieval. A gente sabe que os castelos eram feitos em «open space», mas para isso ele há um provador, umas cortinas, uma coisa assim. Não é por nós. É pelos estrangeiros. É que isto aqui ao Castelo até vêm turistas lá de fora.
O senhor encenador é danado para jogar à raspadinha. Mas isso não se faz nas costas do miúdo.
Olha, puseram comeres na mesa... isto vem incluído no preço?
Na lusitana perspectiva de haver comes e bebes, que o preço dos ingressos bem o justificava, os espectadores acercam-se da mesa das vitualhas e manjares de antanho. Vinhos Barca Velha e folhados de salsicha.
Mãe e filha mostram algum acanhamento em chegarem-se à frente. O pai, entrementes, recorre ao telemóvel para despachar alguns assuntos de serviço com a sua auxiliar administrativa, que em surdina trata por «querida». Os folhados de salsicha começam a desaparecer.
Se isto não parece uma cena de «O Senhor dos Anéis» é porque vocês não viram o filme do Tolkien.
Deitando contas à vida, o que é raro no mundo das artes, o encenador conclui que o preço dos bilhetes não colmata a despesa feita em folhados de salsicha. O ar pensativo e a mão no queixo não dão margem para dúvidas. Isto só vai lá com um subsídio.
O Homem de Lata, acabadinho de chegar de uma mini-produção de «O Feiticeiro de Oz», mostra que, no tocantes a folhadinhos de salsicha, estamos aí.
Este é um raro momento. Por isso, publicamo-lo, apesar da deficiente qualidade da imagem. Trata-se de um reencontro familiar. O espectador descobre que o seu mais velho, que julgava «estar bem» como taxista em Genebra, se perdeu nos caminhos ínvios desta Lisboa, abraçando uma carreira teatral de gosto duvidoso e resultados incertos. «Precisamos ter uma conversa séria, Isaltino. É isto que queres fazer com a tua vida? O teu tio não te tratava bem lá na Suíça?».
A única dúvida que nos persegue consiste em compreender o motivo pelo qual esta juventude decidiu atrunfar folhados de salsicha a meio de uma cerimónia iniciática. Damos, porém, o benefício da dúvida, pois não somos versados em artes ocultas e nessas cenas «dark» e todas satânicas. Se o folhado de salsicha faz parte da cerimónia, vamos embora.
Nas grandes produções cénicas há sempre disto: penetras, espertalhões, mirones, paparazzi. Nunca falham. É uma coisa inacreditável. Só para não comprarem o DVD que está à venda à saída, a 45 €. É incrível como esta triste realidade se repete anos e anos. A polícia tudo permite, fecha os olhos, concentra-se nos roubos à mão armada e no combate ao «graffiti». Amanhã, ou mesmo hoje à noite, é mais do que sabido que este espectáculo, cuja produção foi extremamente dispendiosa, vai estar inteirinho no YouTube. Mas isto não acontece só cá. Lá fora também é a mesma coisa. A isto chama-se globalização.
Incrível... É nestas alturas que nos lembramos dos nomes grandes da Ordem Templária. Saudosos Paio Gomes, Pedro Alvites, Martim Sanches, Estêvão de Belmonte. Saudoso Hugo de Martónio. Iam lá acima e partiam-lhe mas era a máquina na cara e davam-lhe com uma marreta nos dentes. Já não há Homens dessa têmpera. Por isto é que o País está como está.
No final do espectáculo, D. Lopo Moimenta, decerto aliviado da tremenda responsabilidade de uma representação desta envergadura, aproveita os breves instantes que antecedem a tremenda ovação do público para fumar um aristocrático cigarrito. D. Lopo, tudo bem, mas não carregue no vício. Queremos que de sua garganta continuem, por muitos e bons anos, a emergir os turbilhões de vozes que dão corpo às Grandes Figuras que deixaram marca indelével no curso da História Pátria.
Em contrapartida, os compéres de D. Lopo realizam a catarse das dramatis personae que encarnaram através de algumas momices idiotas para a nossa equipa de reportagem. Não lhe leveis a mal, são jovens. Estiveram à altura do muito que se lhes pedia. Comportaram-se como os melhores, relevai esta sua inofensiva ingenuidade. Deixai os jovens, deixai os jovens. Deixai-os no ardor dos anos, na lúdica verdura de suas mocidades. Lembremos-lhe tão-só que a SIDA e a gravidez adolescente são doenças que aconselham, a título cautelar, o recurso ao preservativo ou ao método das temperaturas. Advertência final, e não nos leveis a mal, moços d'algo: até hoje, não está cientificamente comprovado que o método das temperaturas seja um meio eficaz a 100% no combate à SIDA. Precavei-vos dos males de vossos dias.
Assim como assim, tinham mais público agora do que durante a representação. O mundo como teatro.
Dada a riqueza das vestes e dos adereços, bem como devido à magnificência dos cenários, esta produção foi acompanhada de rigorosas medidas de segurança. Para isso também contribuiu, supomos, a numerosa quantidade de espectadores «VIP» que presencariam a função. São assuntos que nos transcendem, modestíssimos figurantes desta grande encenação que se chama a vida. Mas vá lá a gente perceber isto: um extintor no Castelo de São Jorge? Aquilo é só pedra e cimento armado... Bem, e se houver um sarilho dos grandes também não há de ser um extintor como este que vai resolver as coisas. A menos que o objecto também se integre no meta-texto de alguma hermenêutica que a nossa ignorância não alcançou.
Mas aqui fica a placa para que os leitores de Lisboa SOS possam ligar e marcar bilhetes para as próximas representações. 4 de Outubro não fazem. É pena. Mas quem quiser ir ver Shakespeare a Vendas Novas já sabe: dia 4 de Outubro.
A grandiosidade desta Obra de Cultura - e aqui não há que ter medo das maiúsculas, caramba! - esmagou literalmente alguns espectadores estrangeiros. Lá na terra deles, não há disto. A Britta e a Birgitte estão arrasadinhas de todo.
Indiferentes à passagem dos séculos, as pedras do Castelo olham com bonomia as tragédias e as comédias da vida humana. Só temem uma coisa: serem grafitadas com dizeres antimonárquicos. Quanto ao resto, repousam em paz. Gerações passam.
Aproveitamos o feliz ensejo de sermos lidos pelos mihares de visitantes deste blogue para promover outras valências do Castelo de São Jorge. Entre os serviços oferecidos, destaca-se a «Saída / Exit». Mas não parta deste local de memórias e afectos sem uma passagem pelo «Fraldário», bem conseguida tentativa de transposição da lógica expositiva do «Oceanário» da Expo'98 para o interior das vetustas pedras do Castelo.
«Olisipónia» também merece atenta visita. Mas compreendemos perfeitamente que os senhores turistas, sempre atarefados na descoberta dos tesouros que uma grande capital oferece, não tenham tempo para se deter, como deviam, em «Olisipónia». «Olisipónia», uma mostra de como Lisboa numas coisas é mais selva do que a Amazónia e noutras mais deserto do que a Patagónia. Mas compreendemos que os senhores turistas não tenham tempo. É o preço a pagar pelo turismo de massas e pelos voos em «low cost», dois dos muitos males que afectam as gentes de nossos dias. Já para os residentes em Lisboa, ademais não pagando bilhete de entrada no Castelo, é imperdoável não reservar duas tardes (ou uma manhã e uma tarde) para uma inspiradora descoberta de «Olisipónia». Olisipónia é, como esperamos ter mostrado nesta reportagem, uma cidade que vale a pena. Para os senhores espectadores, fazei uma boa viagem até à nobre cidade de Leiria.
Sem comentários:
Enviar um comentário