domingo, 26 de fevereiro de 2012

Os invisíveis.



Descobrir os velhos que se tornaram invisíveis
Por Kátia Catulo
Numa freguesia de Lisboa com 37 mil habitantes, descobrir um velho fechado num apartamento é um trabalho de formiga. Os números dos Censos 2011, neste caso, pouco ou nada ajudam; servem apenas para comprovar que a tarefa vai demorar muito tempo – há 10 700 idosos a viver em Benfica. Agora só falta saber onde é que eles estão e quantos passam o dia metidos com os seus botões. Esta é uma missão para os técnicos da equipa GIRO – Grupo de Intervenção de Rua – da Junta de Freguesia de Benfica. O nome de código engana os que julgam estar perante uma brigada de acção radical. São na maioria mulheres com um estilo mais próximo de mamãs. Andam acompanhadas por dois agentes da PSP a conversar com quem atravessa a estrada ou quem abre a porta para saber o que é que elas estão para aí a dizer pelo intercomunicador do prédio. O trabalho das três assistentes sociais e dos voluntários começou em Janeiro, no bairro do Charquinho e acaba quando acabar. Isto é, assim que percorrerem todos os bairros da freguesia e sinalizarem todos os velhos a viver sozinhos. Como é que numa torre de sete andares é possível saber se há um velhote solitário? Batendo às portas. Pois que não há outra maneira. No 3.o esquerdo, ou no 4.o direito pode viver um, no lote 46, mais um e, na rua a seguir, mais outro. Se a folha A4 de Rosário Lopes, coordenadora do programa, fosse um mapa, teria vários círculos à volta, sinalizando os perigos – velhos acamados, velhos que não saem de casa porque cuidam de outros velhos, velhos que andam em casa a resmungar com as doenças da velhice. Um a um, os nomes vão surgindo no papel: são 2300 moradores no Charquinho, 380 são idosos apoiados por família ou por instituições e 72 isolados do mundo. A contabilidade, no entanto, está ainda em aberto, já que o balanço final só é feito depois de se riscar todas as portas do bairro e partir para novo bairro. Quem se mete nestes trabalhos, ouve de tudo. Desde lamúrias de Lisete Cardinal, pensionista de 71 anos, cuida de uma mãe de 88, que depois do AVC não saiu mais da cama; queixumes de Maria da Conceição que teve o marido a noite inteira a oxigénio e agora saiu de casa por se sentir “abafado”; convites para provar um caldo verde “acabadinho de sair do fogão”; confissões de um pai viúvo que tem duas filhas a viver na margem sul, mas consegue muito bem tratar da roupa, cozinhar e ainda lavar a loiça; temores do senhor Pato, que tem a mulher internada e que ficou sem ninguém para cuidar dele. Ouvir é só uma parte deste ofício, há uma outra mais ambiciosa. A missão da equipa GIRO é quase uma utopia se considerarmos que as cidades são lugares frios e sem tempo para ouvir os velhotes ou sequer saber quem mora na porta ao lado. Estas mulheres da junta de Benfica querem restaurar as redes de vizinhança de que as gerações mais novas só sabem que existem porque algures na infância passaram as férias de Verão numa aldeia do interior. A estratégia passa por preparar residentes e comerciantes para ficarem atentos: uma luz acesa noite e dia, a caixa do correio cheia de papéis, um cliente habitual que não aparece no café ou na mercearia. São sinais que qualquer morador pode detectar e avisar de imediato os técnicos da junta de freguesia ou os agentes da PSP que têm um telemóvel para estes casos.“A ideia é conseguir que os vizinhos disparem os alertas para depois podermos actuar com a nossa rede de voluntários ou através da entreajuda dos moradores”, conta a presidente Inês Drummond Gomes. O objectivo passa por os velhos a continuarem na sua vida, mas que possam, a pouco e pouco, deixar de ser invisíveis.
ionline

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