A lenta agonia, ou a salvação, de um quarteirão de Lisboa
Por José António Cerejo in Público
Um vasto espaço verde do tempo do Palácio Valle Flôr, no Alto de Santo Amaro, conta com cinco projectos em trinta anos. O último, já aprovado, mas agora em tribunal, é de Souto de Moura. Certo é que tudo ali mudará
Vai para dez anos, em Abril de 2002, um projecto para o Alto de Santo Amaro foi chumbado pelo então Instituto Português do Património Arquitectónico (Ippar). O mesmo aconteceu, quatro anos depois, a uma outra proposta para ali apresentada por outro arquitecto. Mas já em 2007, o organismo que sucedeu ao Ippar, o Igespar, viabilizou no mesmo sítio um projecto de um terceiro arquitecto. Só que esta última solução merecera dos consultores do Igespar objecções semelhantes às que tinham levado à recusa das anteriores.
Em Lisboa, a cidade faz-se e desfaz-se assim há muitos anos: o que não se pode agora passa a ser permitido mais logo; o que é negado a este é autorizado àquele; o que se faz reconhecidamente mal acaba por servir de pretexto para se voltar a fazer mal. Basta haver tempo e meios para esperar. Basta insistir, baralhar e voltar a dar. Basta conseguir apoios onde fazem falta. Mas não é obrigatório que os bloqueios sejam bons e as facilidades perversas. Por vezes é só a burocracia que paralisa projectos e condena a cidade.
No Alto de Santo Amaro, entre Alcântara e a Ajuda, os palacetes e os seus generosos jardins coroavam a encosta, subindo da Junqueira. Ainda nos anos 70 do século passado tinham começado as investidas contra os tesouros que por ali abundavam. Já no final da década seguinte, os poderes públicos reagiram, lançando, para uma área mais vasta, o Plano de Salvaguarda e Valorização de Ajuda-Belém e outras medidas preventivas da destruição dos valores patrimoniais ameaçados. Além disso, vários edifícios e monumentos foram classificados - entre os quais o Palácio Valle Flôr, actual Hotel Pestana Pallace - e uma zona de protecção especial de alguns deles foi criada.
Tudo parecia blindado para que o interesse privado não se sobrepusesse ao interesse público. Regras e regulamentos restritivos não faltaram. Mas as contradições entre eles, as guerras de competências entre serviços públicos e as diferentes interpretações das mesmas normas - entre outros factores - abriram portas que o interesse público parecia ter fechado.
Parte destes instrumentos já estavam em vigor quando, em Dezembro de 1989, ainda com Kruz Abecasis na presidência, a Câmara de Lisboa aprovou um estudo que permitia a construção de um conjunto de edifícios de sete pisos, separado do Palácio Valle Flôr apenas pela Rua Soares de Passos. A viabilidade aprovada, de 16.225 m2 de construção acima do solo, era, porém, inferior em mais de 3 mil m2 aos 19.380 m2 previstos no estudo do arquitecto Ronald Hart. O conjunto ocupava todo um quarteirão verde com 5500 m2, delimitado por aquela rua e pelas ruas Jau, João de Barros e Pedro Calmon e pertencente à Sociedade Agrícola Valle Flôr. Uma das metades tinha ainda grandes árvores tropicais do tempo da construção do palácio, no século XIX. A outra tinha (e tem) quatro moradias, de traça semelhante, que asseguravam a transição entre os palacetes e jardins e os quarteirões de habitação colectiva.
Antes de aprovar o que aprovou, Abecasis pedira o parecer do Instituto Português do Património Cultural (IPPC), o qual foi enviado no final de Dezembro de 1989, dias depois de Jorge Sampaio ter ganho a câmara. Era fortemente negativo, dizia que o projecto violava as medidas preventivas, e foi enviado por telegrama dois dias depois da data em que o município entendera verificar-se a aprovação tácita. Face às relações tensas então existentes entre autarquia e o IPPC, a secretária de Estado da Cultura, Teresa Gouveia, escreveu a Sampaio lembrando-lhe que a aprovação de qualquer projecto para o local exigia a autorização do Ministério da Cultura e que essa nem sequer fora pedida.
Projecto desenterrado
Passado mais de um ano, no Verão de 1991, e sem que o IPPC tivesse sido consultado, as obras iniciam-se com o derrube de árvores e a escavação de fundações. Convencido de que se tratava da construção dos edifícios previstos no estudo que reprovara, o IPPC, através do seu presidente, Antero Ferreira, pediu explicações a Sampaio e propôs ao secretário de Estado da Cultura que determinasse o embargo dos trabalhos. O presidente da câmara limitou-se a informar, para espanto do IPPC, que o terreno onde estava a ser feita a obra tinha sido vendido pela sociedade Valle Flôr a uma outra empresa (Mistral) e que os cinco edifícios em construção na Soares dos Passos tinham sido aprovados em 1983, tendo as licenças sido emitidas meses antes.
O que acontecera então? Impedida de avançar em todo o quarteirão nas condições que propôs no estudo de Ronald Hart, a sociedade Valle Flôr socorrera-se de uma aprovação camarária velha de oito anos - que os consultores de Sampaio entenderam não ter caducado -, pedira as licenças e vendera metade do terreno pronto a construir. Foi assim, à revelia do IPPC, que ali foi construido em 1992, com as alterações feitas em curso de obra pelo arquitecto Mário Sua Kay, um bloco de cinco edifícios de sete pisos projectado em 1982 por Fernando Ló e que representava a primeira fase do empreendimento então aprovado. Pelo meio, a proposta de embargo do IPPC caiu no esquecimento, tendo Santana Lopes, então secretário de Estado da Cultura, ordenado que o assunto fosse resolvido em reunião com a câmara, que nunca veio a realizar-se.
Volvida uma década, em 2002, a sociedade Valle Flôr voltou a apostar na urbanização da metade sobrante do quarteirão, a das quatro moradias, então em bom estado e ainda ocupadas pelos seus inquilinos. Para esse espaço já não foi possível recorrer à aprovação global de 1982, até porque os projectos de arquitectura, ao contrário do que sucedeu com os da outra metade, aprovados em 1983, nunca chegaram a ser entregues. Daí que, em 2002, tenha submetido ao Ippar (sucessor do IPPC) um projecto do arquitecto Sua Kay que previa a demolição das moradias e a construção de um conjunto de sete pisos com um total de 10.631 m2 acima do solo, semelhante e simétrico ao que fora feito na parte de cima. A resposta foi negativa, entendendo o Ippar que a solução, incluindo a demolição das moradias, alteraria "de modo significativo" as características ambientais da zona, "contribuindo negativamente para o enquadramento aos vários imóveis classificados existentes".
Falhada esta tentativa, os proprietários avançaram em 2005 com uma nova proposta, esta do arquitecto Ângelo Dias, idêntica à anterior e pressupondo também a demolição das moradias. A seu favor, a sociedade invocou o facto de já ali estar construído um bloco equivalente e apresentou um parecer privado, assinado por um professor de Arquitectura, que sublinhava o "pouco valor representativo das moradias" a demolir. A solução em análise, acrescentava o professor, "não ofende a qualidade ambiental e paisagística" e constitui uma "opção adequada ao local (...) seja pelo bom senso e pelo acerto da concepção de princípio, seja porque não agride a tradição sociocultural do bairro e a sua tradição arquitectónica". O autor era Antero Ferreira, o antigo presidente do IPPC que em 1989 se batera contra a destruição daquele espaço verde.
No Ippar, Flávio Lopes, o então director regional de Lisboa que em 1991 propusera o embargo do bloco da Soares de Passos, defendeu a aprovação do pedido, sustentando que a relação harmoniosa estabelecida entre as moradias e o Palácio Valle Flôr "foi quebrada" com a construção daquele conjunto de edifícios. Quem assim não entendeu foi o conselho consultivo do instituto, que, no ano seguinte, em sintonia com uma outra informação técnica interna, se pronunciou pelo chumbo da nova solução. O parecer do conselho, que mereceu em Julho de 2006 a aprovação do presidente do Ippar, Elísio Summavielle, defendia a redução da altura do imóvel, "a avaliação da possibilidade de integração das moradias" e uma "frente construída com interrupções" - por oposição à solução proposta, que teria uma frente contínua de perto de 80 metros ao longo da Rua Pedro Calmon.
(in Público).
Por José António Cerejo in Público
Um vasto espaço verde do tempo do Palácio Valle Flôr, no Alto de Santo Amaro, conta com cinco projectos em trinta anos. O último, já aprovado, mas agora em tribunal, é de Souto de Moura. Certo é que tudo ali mudará
Vai para dez anos, em Abril de 2002, um projecto para o Alto de Santo Amaro foi chumbado pelo então Instituto Português do Património Arquitectónico (Ippar). O mesmo aconteceu, quatro anos depois, a uma outra proposta para ali apresentada por outro arquitecto. Mas já em 2007, o organismo que sucedeu ao Ippar, o Igespar, viabilizou no mesmo sítio um projecto de um terceiro arquitecto. Só que esta última solução merecera dos consultores do Igespar objecções semelhantes às que tinham levado à recusa das anteriores.
Em Lisboa, a cidade faz-se e desfaz-se assim há muitos anos: o que não se pode agora passa a ser permitido mais logo; o que é negado a este é autorizado àquele; o que se faz reconhecidamente mal acaba por servir de pretexto para se voltar a fazer mal. Basta haver tempo e meios para esperar. Basta insistir, baralhar e voltar a dar. Basta conseguir apoios onde fazem falta. Mas não é obrigatório que os bloqueios sejam bons e as facilidades perversas. Por vezes é só a burocracia que paralisa projectos e condena a cidade.
No Alto de Santo Amaro, entre Alcântara e a Ajuda, os palacetes e os seus generosos jardins coroavam a encosta, subindo da Junqueira. Ainda nos anos 70 do século passado tinham começado as investidas contra os tesouros que por ali abundavam. Já no final da década seguinte, os poderes públicos reagiram, lançando, para uma área mais vasta, o Plano de Salvaguarda e Valorização de Ajuda-Belém e outras medidas preventivas da destruição dos valores patrimoniais ameaçados. Além disso, vários edifícios e monumentos foram classificados - entre os quais o Palácio Valle Flôr, actual Hotel Pestana Pallace - e uma zona de protecção especial de alguns deles foi criada.
Tudo parecia blindado para que o interesse privado não se sobrepusesse ao interesse público. Regras e regulamentos restritivos não faltaram. Mas as contradições entre eles, as guerras de competências entre serviços públicos e as diferentes interpretações das mesmas normas - entre outros factores - abriram portas que o interesse público parecia ter fechado.
Parte destes instrumentos já estavam em vigor quando, em Dezembro de 1989, ainda com Kruz Abecasis na presidência, a Câmara de Lisboa aprovou um estudo que permitia a construção de um conjunto de edifícios de sete pisos, separado do Palácio Valle Flôr apenas pela Rua Soares de Passos. A viabilidade aprovada, de 16.225 m2 de construção acima do solo, era, porém, inferior em mais de 3 mil m2 aos 19.380 m2 previstos no estudo do arquitecto Ronald Hart. O conjunto ocupava todo um quarteirão verde com 5500 m2, delimitado por aquela rua e pelas ruas Jau, João de Barros e Pedro Calmon e pertencente à Sociedade Agrícola Valle Flôr. Uma das metades tinha ainda grandes árvores tropicais do tempo da construção do palácio, no século XIX. A outra tinha (e tem) quatro moradias, de traça semelhante, que asseguravam a transição entre os palacetes e jardins e os quarteirões de habitação colectiva.
Antes de aprovar o que aprovou, Abecasis pedira o parecer do Instituto Português do Património Cultural (IPPC), o qual foi enviado no final de Dezembro de 1989, dias depois de Jorge Sampaio ter ganho a câmara. Era fortemente negativo, dizia que o projecto violava as medidas preventivas, e foi enviado por telegrama dois dias depois da data em que o município entendera verificar-se a aprovação tácita. Face às relações tensas então existentes entre autarquia e o IPPC, a secretária de Estado da Cultura, Teresa Gouveia, escreveu a Sampaio lembrando-lhe que a aprovação de qualquer projecto para o local exigia a autorização do Ministério da Cultura e que essa nem sequer fora pedida.
Projecto desenterrado
Passado mais de um ano, no Verão de 1991, e sem que o IPPC tivesse sido consultado, as obras iniciam-se com o derrube de árvores e a escavação de fundações. Convencido de que se tratava da construção dos edifícios previstos no estudo que reprovara, o IPPC, através do seu presidente, Antero Ferreira, pediu explicações a Sampaio e propôs ao secretário de Estado da Cultura que determinasse o embargo dos trabalhos. O presidente da câmara limitou-se a informar, para espanto do IPPC, que o terreno onde estava a ser feita a obra tinha sido vendido pela sociedade Valle Flôr a uma outra empresa (Mistral) e que os cinco edifícios em construção na Soares dos Passos tinham sido aprovados em 1983, tendo as licenças sido emitidas meses antes.
O que acontecera então? Impedida de avançar em todo o quarteirão nas condições que propôs no estudo de Ronald Hart, a sociedade Valle Flôr socorrera-se de uma aprovação camarária velha de oito anos - que os consultores de Sampaio entenderam não ter caducado -, pedira as licenças e vendera metade do terreno pronto a construir. Foi assim, à revelia do IPPC, que ali foi construido em 1992, com as alterações feitas em curso de obra pelo arquitecto Mário Sua Kay, um bloco de cinco edifícios de sete pisos projectado em 1982 por Fernando Ló e que representava a primeira fase do empreendimento então aprovado. Pelo meio, a proposta de embargo do IPPC caiu no esquecimento, tendo Santana Lopes, então secretário de Estado da Cultura, ordenado que o assunto fosse resolvido em reunião com a câmara, que nunca veio a realizar-se.
Volvida uma década, em 2002, a sociedade Valle Flôr voltou a apostar na urbanização da metade sobrante do quarteirão, a das quatro moradias, então em bom estado e ainda ocupadas pelos seus inquilinos. Para esse espaço já não foi possível recorrer à aprovação global de 1982, até porque os projectos de arquitectura, ao contrário do que sucedeu com os da outra metade, aprovados em 1983, nunca chegaram a ser entregues. Daí que, em 2002, tenha submetido ao Ippar (sucessor do IPPC) um projecto do arquitecto Sua Kay que previa a demolição das moradias e a construção de um conjunto de sete pisos com um total de 10.631 m2 acima do solo, semelhante e simétrico ao que fora feito na parte de cima. A resposta foi negativa, entendendo o Ippar que a solução, incluindo a demolição das moradias, alteraria "de modo significativo" as características ambientais da zona, "contribuindo negativamente para o enquadramento aos vários imóveis classificados existentes".
Falhada esta tentativa, os proprietários avançaram em 2005 com uma nova proposta, esta do arquitecto Ângelo Dias, idêntica à anterior e pressupondo também a demolição das moradias. A seu favor, a sociedade invocou o facto de já ali estar construído um bloco equivalente e apresentou um parecer privado, assinado por um professor de Arquitectura, que sublinhava o "pouco valor representativo das moradias" a demolir. A solução em análise, acrescentava o professor, "não ofende a qualidade ambiental e paisagística" e constitui uma "opção adequada ao local (...) seja pelo bom senso e pelo acerto da concepção de princípio, seja porque não agride a tradição sociocultural do bairro e a sua tradição arquitectónica". O autor era Antero Ferreira, o antigo presidente do IPPC que em 1989 se batera contra a destruição daquele espaço verde.
No Ippar, Flávio Lopes, o então director regional de Lisboa que em 1991 propusera o embargo do bloco da Soares de Passos, defendeu a aprovação do pedido, sustentando que a relação harmoniosa estabelecida entre as moradias e o Palácio Valle Flôr "foi quebrada" com a construção daquele conjunto de edifícios. Quem assim não entendeu foi o conselho consultivo do instituto, que, no ano seguinte, em sintonia com uma outra informação técnica interna, se pronunciou pelo chumbo da nova solução. O parecer do conselho, que mereceu em Julho de 2006 a aprovação do presidente do Ippar, Elísio Summavielle, defendia a redução da altura do imóvel, "a avaliação da possibilidade de integração das moradias" e uma "frente construída com interrupções" - por oposição à solução proposta, que teria uma frente contínua de perto de 80 metros ao longo da Rua Pedro Calmon.
(in Público).
2 comentários:
Boa tarde!
Queria dizer que é tão triste ver a floresta de edificios descaracterizados que cresceram na zona da Expo quando se chega a Lisboa pela Vasco da Gama,
será que Lisboa em toda a sua frente vai ficar assim?
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