quarta-feira, 5 de maio de 2010

Figuras de Lisboa: Guida Scarllaty.
















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Guida Scarllaty: A rainha da noite está de volta
por Bruno Horta,
O travesti mais conhecido da noite lisboeta não actuava há 20 anos. O i acompanhou o regresso e ouviu as histórias do seu passado
Trocou muitas vezes de cidade, de amigos, de amores e de profissão. Só nunca abandonou a personagem que o tornou famoso no fim dos anos 70 em Lisboa e que marcou um antes e um depois no travestismo artístico português: Guida Scarllaty, mulher faustosa e brejeira, caprichosa e burlesca, tímida e desbocada. Na sexta-feira passada regressou, depois de 20 anos adormecida, e estreou--se no palco da discoteca Mister Gay, no Monte da Caparica, perto de Almada. O show chama-se "Virgens à Portuguesa" e vai estar em cena até ao fim do mês, todas as sextas e sábados, à uma da manhã. Por uma hora, em registo revisteiro e ambiente muito kitsch, Amália, Milú, Cândida Branca Flor e Beatriz Costa regressam à vida.

Carlos Alberto Ferreira, a imortal Guida Scarllaty, passou o dia de estreia acompanhado pelo i. Confessou as razões do regresso, fez o relato da sua incrível história de vida, mas não disse a idade.

16h30 (Saldanha, Lisboa)

Acordou há pouco. É um noctívago, mesmo quando fica em casa. Entra no carro, um Opel de imodesta figura, e dirige-se para o lar onde a mãe vive há alguns meses. Chama-se Adelaide, tem 91 anos e mantém-se vivaça. A ligação entre ambos é fortíssima. A poucas horas de regressar a palco seria impensável não se verem. Carlos está ansioso, mas disfarça. A visita é curta. Antes de sairmos, começa a desenrolar o novelo.

Vestiu-se de mulher pela primeira vez aos 16 anos, num espectáculo da sociedade recreativa Columbófilos de Cascais. Já não se lembra ao certo da primeira imitação, mas deve ter sido uma cantora loura. "Em travesti gosto de fazer de loura para passar por burra."

Passou-se isto muito antes do 25 de Abril de 1974. Imitava de vez em quando aquilo que tinha visto durante uma viagem a Paris com um amigo. "Entrei no Chez Madame Arthur, o cabaret de travestis mais famoso da Europa, e fiquei louco. Claro que os meus pais não sabiam, só muito depois, quando abri a minha própria casa de espectáculos, é que se aperceberam e tiveram de aceitar."

Filho único, nascido em Lisboa, estudou no colégio jesuíta de S. João de Brito e no Liceu Camões. Fez um curso de Decoração de Interiores na Fundação Ricardo Espírito Santo e ainda trabalhou uns anos nessa área. O pai tinha um restaurante, a mãe era empregada numa fábrica de perfumes.

Até muito mais tarde, a Guida Scarllaty que se estreou nos Columbófilos de Cascais teve aparições fugazes. Carlos passou pelo Conservatório, experimentou teatro e cinema. Escapou à tropa, alegando problemas psiquiátricos. Só em 1975, com a liberdade a estalar-lhe no corpo, é que a personagem vinga.

17h35 (Rato, Lisboa)

Faz uma visita de médico à estilista Isabel Telinhos, só para ir buscar umas luvas brancas que serão usadas no espectáculo. Isabel fez-lhe muitos figurinos nos idos anos 80, e agora, no regresso ao estrelato, só a ela poderia recorrer. À saída do ateliê, já dentro do carro, voltamos à nossa história. Nos meses que se seguiram à Revolução andou sem fazer nada até ao dia em que decidiu abrir um café--concerto: Scarllaty Club, Rua de São Marçal, no Príncipe Real, em Lisboa. A 22 de Novembro de 1975. Não era um espaço para ele actuar, cabia a outros transformistas essa tarefa. "Nunca na vida sonhei ser travesti. Pensava que aquilo tinham sido umas brincadeiras de adolescente." Queria manter-se apenas como empresário. Até que se dá um acaso. Lydia Barloff (José Manuel Rosado), que se tornaria um dos maiores travestis portugueses, falhou um dos espectáculos e Carlos teve de o substituir - é assim, com esta candura, que faz o relato. Nascia a sério, e para sempre, Guida Scarllaty.

Travestir-se foi a forma mais fácil que encontrou para ser actor. "Gosto da transformação radical, de representar uma personagem que não existe. É isso que me atrai. No teatro era muito canastrão, a voz fugia-me sempre para o falsete. Não dava." A famosa actriz Laura Alves, que ele bem conheceu, tornar-se-ia a sua principal referência enquanto artista. Além dela, só a brasileira Dercy Gonçalves.

19h00 (Av. Def. de Chaves, Lisboa)

A esta hora já lhe tínhamos feito a pergunta que fica sem resposta. "Um artista não tem idade", sentenciou, quando entrava no Holmes Place. Descobriu o ginásio há pouco tempo e não quer outra coisa. Faz passadeira e bicicleta, depois vai ao banho turco. Revela, a propósito, que só come carne uma vez por semana. Não fuma e bebe pouco. E entretanto a conversa desvia-se. "Não tive muitos deslizes na vida. Experimentei drogas, sim, mas foi uma coisa pontual. A verdadeira embriaguez sempre foi enfrentar o público." Segue-se o jantar, numa pequena tasca perto de casa. Junta-se Fernando Santos (travesti Deborah Kristal), amigo de há 30 anos. A conversa traz mais memórias. "O Scarllaty Club era uma coisa fortíssima. A minha família olhava-me de lado, dizia que eu era homossexual, mas depois começou a ir ver. Estavam lá também actores, jornalistas, gente muita conhecida na época. Era um espaço frequentado por homossexuais, mas sem essa conotação única." Durou 13 anos. Em 1988 encerra as portas. O negócio tinha corrido muito bem, mas Carlos estava "cansado de Lisboa, das tricas e das invejas que o mundo do espectáculo sempre tem". Largou tudo. Foi para o Algarve como relações públicas da discoteca Kiss. E continuou a actuar, mas por pouco tempo.

No início dos anos 90 deixa a noite. Funda uma revista no Algarve e torna-se jornalista. Em 1995, nova transformação. Do Algarve para Salvador da Bahia. A mãe vai com ele, o pai falecera entretanto. Tencionava ficar no Brasil até ao fim da vida, mas os problemas familiares, que prefere não especificar, obrigaram--no a regressar. E é por causa disso que Guida Scarllaty também está de volta.

22h00 (Monte da Caparica)

Chega à discoteca Mister Gay, pede um whisky e vai para o camarim. Na mesa frente ao espelho tem fotos antigas: dele, da mãe e de Nossa Senhora de Fátima. Começa a preparar-se com a ajuda do maquilhador Diogo Andrade. No mesmo espaço estão as transformistas Cláudia Ness e Nicole Vartin e o bailarino Patrick Lost. Companheiros neste espectáculo. Dão-se os últimos retoques nas perucas, põem-se os vestidos a jeito, escovam-se os sapatos, acalmam-se os nervos com comentários viperinos.

Salvo uma breve aparição num evento da Expo '98 e um pequeno apontamento ao vivo nesta discoteca há uma semana, passaram-se 20 anos desde que Carlos fez o último show. "Cheguei a pensar que nunca mais seria capaz. Achava que já não teria ritmo e traquejo."

Entre a base e os brilhantes dourados, antes dos collants cremes e depois do batom garrido, disserta sobre como deve ser um show de travestis. "Um homem vestido de mulher ou tem graça ou mete nojo, não há meio termo. O espectáculo de travestis tem de ter comicidade, de divertir. O travesti pelo travesti, sem conversa e sem representação, não tem interesse." Pouco antes de o pano se abrir, uma última confidência: esta nova fase da vida não está a ser fácil. Guida apareceu para o ajudar. A moral da história não tem nada que saber: ele e ela vão ficar juntos para sempre.

(in jornal «i»)

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