domingo, 18 de dezembro de 2011

O maior de todos.







Gonçalo Ribeiro Telles: “Talvez os governantes queiram destruir o país”
Por Luís Claro,


Ribeiro Telles diz que não percebe a estratégia do governo. “Dá a sensação que não conhecem o país”, afirma
.

Gonçalo Ribeiro Telles foi recentemente homenageado pela Fundação Calouste Gulbenkian em parceria com o Centro Nacional de Cultura. O i conversou com ele durante mais de uma hora sobre a vida e as causas que sempre defendeu.

O António Barreto disse, na homenagem que lhe fizeram, que o Gonçalo Ribeiro Telles tanto se passeia pelos salões dos poderosos como come pastéis na pastelaria da esquina. É uma boa descrição?

É. Talvez marque uma certa ideia que eu tenho sobre a vida e a circunstância da vida.

Tem a ver com as suas raízes, entre o litoral e o campo?

Absolutamente. E até actividades. Fui muito influenciado pela terra, mas também pelo mar.

O seu pai tinha raízes no campo e a sua mãe era ligada ao mar…

Exactamente.

Sentiu, a partir de determinada altura, que os poderosos deixaram de ouvir as suas sugestões com a mesma atenção, perante alguns interesses económicos que começaram a ganhar mais peso?

Julgo que não tinham em mira quaisquer interesses, tinham em mira a circunstância que os envolvia, que era diferente da minha circunstância. Fundamentalmente, tive a felicidade de ter uma visão um pouco mais global das pessoas, do tempo das pessoas, dos espaços que as pessoas ocupam e onde trabalham. E essa visão global permitiu-me entrar numa série de controvérsias com os diferentes sectores das actividades económicas que tinham uma perspectiva completamente virada para o único objectivo de fazer dinheiro.

Deixou de pertencer aos governos a partir de uma certa altura. Deixou de ser convidado ou fartou-se?

Não me fartei. O que pode acontecer é começar a estar maldisposto, mas não me farto. Mas não foi isso. Havia possivelmente outras intenções mais directas num determinado sentido a que eu não podia corresponder.

Não o convidaram porque sabiam que não estava disposto a fazer cedências?

É evidente, por exemplo, sobre o problema do campo e da agricultura não comungava de maneira nenhuma com a generalidade dos técnicos, apesar de ter andado com eles na escola.

A partir de que altura sentiu essa diferença de opiniões em relação ao poder político?

Foi crescendo, porque a partir de determinada altura foi-se desenvolvendo a ideia de que a agricultura não era uma cultura, mas era uma economia feita exclusivamente para criar uma riqueza material, de financiamento fosse do que fosse. Houve muitos políticos – não se pode dizer todos – que se começaram a convencer-se de que a agricultura era qualquer coisa que não tinha lugar no mundo moderno.

Mas pelo menos tinham o interesse de o ouvir?

Nunca fui uma pessoa fechada, mas nunca procurei bater a portas que não se abriam.

Foi subsecretário de Estado do Ambiente em três governos a seguir ao 25 de Abril. Viveu por dentro a revolução...

Sim, e foi aí que se começaram a desenvolver determinadas ideias, determinadas posições – para as quais o país não estava complemente preparado, nem era necessário virem de chofre –, que iam transformando a intervenção no território, nas potencialidades do território e do mar. Era uma forma de ir conquistando um futuro de forma gradual.

Conseguia naqueles tempos tão conturbados incluir na agenda as questões ambientais?

Eram tempos conturbados, mas muito vividos. Vivia-se muito, dialogava-se muito. O pior é quando estamos instaladas. Parecem tempos consistentes, mas não há diálogo, nem há diversificações, nem posições globais sobre os problemas.

É essa a descrição que faz dos tempos que vivemos hoje?

Evidentemente. Por isso temos mais de meio milhão de fogos vazios, que serviram para construir, mas que estão vazios. Temos uma política florestal, que no fundo é a eucaliptação do país com a correspondente morte das aldeias e da agricultura regional.

Sempre houve muita resistência à legislação que aplicou como ministro da Qualidade de Vida no governo de Francisco Pinto Balsemão. Estamos a falar, por exemplo, da Reserva Agrícola e da Reserva Ecológica Nacional. Encontra alguma explicação para essa falta de entusiasmo?

Isso tem de perguntar aos autarcas. Não se procurava o entusiasmo, o que havia era uma resistência. O que pergunto é: qual era o serviço que estavam a fazer?

E qual é a resposta que tem?

A resposta é evidente. A morte das aldeias, a caótica destruição com as urbanizações, o desaparecimento da agricultura. A resposta está nos factos que se vão vendo.

Tentou convencer alguns autarcas do contrário?

Não valia a pena. Eles é que me queriam convencer. A força estava do lado de quem queria impor um determinado modelo e não de quem queria defender uma situação criativa em relação ao território e em relação às gentes. E as pessoas, evidentemente, viam com mais facilidade a primeira solução que a segunda.

Por ser mais compensadora a curto prazo?

Por ser imediata e por ter grande parte da comunicação social a seu favor. Estavam convencidos que o progresso estava na construção, nos grandes edifícios.

Em todo o caso conseguiu, nessa altura, fazer ouvir as suas ideias e aplicar algumas. Como é que o PPM entrou na AD?

Foi um convite do Sá Carneiro. Havia um grande entusiasmo e a noção de que era preciso dar uma volta ao país em relação à política, que resultou numa legislação que ainda hoje existe. Mas a REN (Reserva Ecológica Nacional) e a RAN (Reserva Agrícola Nacional) estão comprometidas, não só na sua estrutura, mas também na sua aplicação. A política de ambiente não tem a força que tinha nessa altura.

Hoje voltou a existir a AD…

Agora há alguma AD? Não conheço.

Uma coligação entre o PSD e o CDS.

Mas não é a AD. Falta-lhe um elemento fundamental. Grande parte da legislação sobre ordenamento do território teve como origem o PPM. Hoje não há uma ideia global por causa dos interesses e por causa de as pessoas estarem à espera de coisas que dêem proveito rapidamente. Por isso é que televisão diz todos os dias que há uma floresta a arder quando é um eucaliptal. Todos os dias se diz que há um desenvolvimento numa determinada região, porque os prédios atingiram determinada altura...

Essa ideia – que passou também pela construção de muitas auto-estradas ou dos estádios de futebol – é uma ideia nossa ou um problema europeu?

É um problema muito nosso, de não fazer um planeamento coordenado. Temos auto-estradas, mas não temos caminhos locais de relação com a vida local. Vê-se a vida passar na auto-estrada, mas não se sente. Desprezamos as aldeias porque não fazem parte desse modelo. O próprio povoamento do país não faz parte desse modelo e portanto não há que tratar sequer da sua dignidade como pessoas. É preciso que acabem.

Já passou essa euforia, principalmente porque acabou o dinheiro para construir.

Hão-de vir mais euforias. Já viu alguma política económica e social que vá ao encontro da recuperação económica e social do mundo rural? O que me aflige é termos um país de alto a baixo, principalmente no Interior, despovoado e apodrecido.

O Presidente da República disse que era preciso voltar à agricultura. Não foi durante os dez anos do cavaquismo que se deu uma machadada no mundo rural, na agricultura, nas pescas…

Não quer que eu diga que é um rebate de consciência, mas todos os responsáveis têm obrigação de rever as suas posições.

É fazer o caminho ao contrário?

Não, é fazer um caminho novo.

Como vamos voltar à agricultura se o mundo rural está desertificado?

Pois é. Essa é agora a dúvida de quem fez isso. Temos de procurar criar uma agricultura de base sustentável com o objectivo de evitar as importações escusadas. Tudo isso é possível, mas não pode ser um trabalho isolado. Tem de ser uma política global. Talvez o senhor Presidente tenha já essa visão de que tem de se começar a construir aquilo a cuja destruição ele assistiu.

Por onde começava?

Pela defesa das potencialidades do espaço rural, do espaço natural do país. Acabava com o pandemónio de construir nas melhores terras de cultura, de não promover uma boa circulação da água através das suas linhas naturais e de recuperar os solos através da própria ocupação vegetal. Há uma inércia enorme perante as asneiras cometidas.

Acredita, ao fim de tantos anos, que é desta que os governantes vão ter sensibilidade para esses problemas?

Talvez queiram acabar com o país ou torná-lo completamente dependente e com uma vida irreal.

Já somos muito dependentes.

Pois estamos. Ainda não sabemos é a actividade que vamos desenvolver para estar no mundo depois desta decadência e desta degradação total do território. Não é com certeza o turismo.

Há quem diga que sim.

Não pode ser, porque o turismo tem por base o ordenamento do território e a paisagem.

O actual ministro da Economia defende que podemos ser uma espécie de Califórnia da Europa...

Ele podia ter dado um exemplo mais europeu, como os países nórdicos. Não é preciso ir buscar um exemplo fora da Europa. E é preciso ver que temos potencialidades enormes para isso, mas para termos um turismo a sério é preciso recuperar o bom ordenamento do território. Não pensem que o turismo vem para um país sem agradabilidade, nem sem valor estético naquilo que se vê quando se abre a janela do hotel.

Já disse várias vezes que muitos políticos não conhecem o país. Acha que é por isso que cometem alguns desses erros?

Alguns conhecerão, mas há muitas intervenções de políticos de tal mediocridade que só se podem basear numa total falta de conhecimento do que é o nosso território e do que é a nossa paisagem.

Fica irritado quando ouve essas intervenções?

Não. Se ficasse já me tinha ido embora.

E da actual ministra do Ambiente, Assunção Cristas, tem uma opinião mais positiva?

Ela tem um trabalho enorme às costas, que é juntar o problema do mar com o problema do ordenamento do território, com o problema da agricultura. Não é culpa da ministra, mas aquele ministério necessitava de uma experiência muito específica de intervenção.

Concorda com a concentração de várias áreas num mesmo ministério?

Concordo que tem de haver uma coordenação, mas espero que os sectores com mais poder económico não sirvam para tapar as mazelas dos espaços com menos rentabilidade imediata, mas absolutamente indispensáveis.

Tem receio que as várias áreas se anulem umas às outras?

Já fundou partidos ligados à terra e em defesa da monarquia. Há ligação entre estas duas causas?

Há sempre uma ligação. A nossa história é uma construção através de um regime monárquico e essa ligação à história e à continuidade perdeu-se. E nesse sentido há de facto um recuo enorme, que permitiu depois uma visão diferente do futuro. Quando a monarquia existia havia sempre um futuro na sequência da dinastia.

É essa a vantagem que vê na monarquia?

É essa a grande vantagem. Isso dá um somatório de uma cultura que é muito difícil de arrancar. Só à força é que se arranca. É o que está a suceder. Há a saudade dessa continuidade.

Os portugueses têm saudades da monarquia. Acha isso?

Dessa continuidade com certeza, porque isto é um país inventado e construído. Construído com as condições que tinha de mar, de terra, de solos e inventado pelo género português.

O caminho teria sido outro com uma monarquia?

Tínhamos seguido um caminho mais paralelo dos países escandinavos.

Os reis não são eleitos. Não é um bom argumento a favor da República?

Os reis são eleitos todos os dias.

Uma vez contou que a sua avó estava sempre à espera que viesse o Paiva Couceiro com os militares do Norte para acabar com a República.

Não era só a minha avó, eram muitas avós. Vinha repor a ordem. No fundo vinha repor a liberdade. As pessoas, sem o sentir, tinham a noção de liberdade.

O país está a viver uma crise muito complexa com o aumento do desemprego, a aplicação de muitas medidas de austeridade. Compreende estes sacrifícios todos que estão a ser pedidos ou impostos aos portugueses?

Não compreendo, porque o próprio sistema não tem nada a ver com essa maior humildade que seria necessária para exigir essa austeridade. Faz uma exigência que as pessoas não compreendem por todo o modelo de sociedade e de instituições que têm. Basta ver os jornais. Hoje é o Museu dos Coches (o governo anterior gastou cerca de 75 mil euros só em duas sessões de apresentação do novo Museu dos Coches).

Os políticos pedem uma austeridade para a qual não dão o exemplo?

Não quero apontar pessoas, mas o meio não reconhece a austeridade sem haver uma presença da humildade, e não há. Não temos essa compreensão das elites políticas, sociais e económicas para aceitarem a austeridade. Eles não percebem que é também com eles e que fazem parte dessa máquina.

Qual é a opinião que tem do actual primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho?

Não tenho opinião, porque não conheço o que eles querem fazer. Dá a sensação que as pessoas não conhecem o país, nem as potencialidades do país.

Vai festejar 90 anos em Maio. Já pensou o que vai fazer nesse dia?

Fazer 90 anos é uma chatice. Vou procurar olhar para os 90 anos e rir-me.

Nunca pensou em escrever as suas memórias?

Não, não tenho paciência para escrever mais. Vou procurar organizar o que já escrevi. Tenho pouco mais para dizer.

Gostava de viver muitos anos ainda?

Isto toda a gente gostava. Vou ter muitas saudades quando me for embora.

Acredita que há outra vida?

Tenho grande esperança que exista qualquer coisa. Quem não tem essa esperança deve ter um dilema terrível e sentir- -se obrigado a deixar coisas.

Não sentiu, ao longo da vida, essa necessidade de deixar uma marca?

Um indivíduo que não acredita que há outra vida é que tem a fuçanguice de deixar uma marca. Eu gostei de servir e levo aspectos da vida muito bons, que talvez sirvam como referência, mas também cometi erros e talvez vá pagar por eles. Pelo menos era justo que assim fosse. Se não há esse sistema de justiça, é uma pena, mas andamos aqui a fazer de parvos [risos].

(jornal «i»).

1 comentário:

Bic Laranja disse...

Inteligência admirável. E clarividência notável.
Cumpts.