segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

A morte não sai à rua.







Lisboa
No alto dos prédios da Baixa há idosos a precisar de ajuda
Por Cláudia Sobral


Dona Carolina aproveita o projecto para se sentir menos sozinha (Rui Soares)
Cinco andares, dez lanços de escadas. Dona Isabel vai subindo um a um, por vezes meio de cada investida. São 25 minutos até ao cimo e a prótese que tem na perna não ajuda. Longe vão os tempos em que saía de casa todos os dias, das "aventuras" nocturnas até à Gulbenkian. Um dia bateram-lhe à porta a oferecer ajuda. Para qualquer coisa, para as pequenas coisas.

Casos como o de dona Isabel, 81 anos, há muitos na Baixa de Lisboa. São "prisioneiros nas suas próprias casas", resume Maria de Lourdes Miguel, responsável pelo Mais Proximidade Melhor Vida, um projecto do Centro Social e Paroquial de São Nicolau que desenvolve um trabalho de proximidade com a população idosa da freguesia e que se estendeu já à da Madalena e a São Cristóvão e São Lourenço.

Quando a convidaram para trabalhar no centro paroquial, Maria de Lourdes Miguel começou a olhar para os números. "Havia cerca de 930 pessoas com mais de 65 anos a viver na Baixa, 1500 contando com o Chiado", conta numa manhã em que na sede do projecto se embrulha bolo-rei para distribuir pelos utentes. Não as via, não sabia quem eram. "Comecei a propor a mim própria o desafio de as procurar nas alturas destes prédios."

O projecto Mais Proximidade Melhor Vida ganhou forma em 2010, mas o trabalho de preparação começou a ser feito muito antes, com o Levantamento da População Idosa com Necessidades de Apoio na freguesia de São Nicolau, realizado em 2007 pela Universidade Católica. Hoje apoiam 84 idosos. O objectivo é chegar aos 150 e abranger todas as freguesias da Baixa.

Trabalhou sempre em hotéis, no Norte, mas desde que se reformou que dona Isabel vive com a irmã, agora viúva, em São Nicolau. O prédio está moribundo, como tantos outros daquela zona da cidade. "Quando a minha irmã esteve mais doente e era preciso chamar uma ambulância durante a noite, tinha de estar sempre a explicar a mesma coisa, ao telefone: "Olhem que não tenho campainha nem consigo abrir a porta, tenho de vos atirar a chave"", conta.

Três em cada quatro dos idosos inquiridos para o levantamento da Universidade Católica vivem de quartos andares para cima. A juntar a isto, 32% têm dificuldades de locomoção. Para além disso, "ficaram sem as suas bases", diz Maria de Lourdes Miguel. Muitos deles vieram para Lisboa trabalhar e instalaram-se nos últimos andares, os que tinham as rendas mais baixas. Os pisos de baixo eram destinados a lojas e armazéns, que são cada vez menos.

Umas cortinas

"O estar a ouvir uma história, o ir fazer uma compra ou ir levantar dinheiro faz toda a diferença para estas pessoas", acredita Maria de Lourdes Miguel. O apoio vem dos laços de proximidade que as duas técnicas a tempo inteiro no projecto, Mafalda Ferreira, assistente social, e Susana Rito, gerontóloga, têm vindo a criar com a população. Calcorreiam as ruas da Baixa em visitas, fazem e atendem telefonemas, tratam de tudo o que for preciso. Os voluntários servem de complemento nas visitas para aqueles que não podem sair de casa.

"Estamos a inventar tudo o que possa haver de mais proximidade", orgulha-se a mentora do projecto. Os objectivos do Mais Proximidade Melhor Vida passam por diminuir o impacto da solidão dos idosos, promover a sua saúde e o bem-estar, facilitar a aquisição de bens e o acesso à informação e melhorar a qualidade da intervenção. Muitos dos utentes têm apoio também da Santa Casa da Misericórdia e das juntas de freguesia.

O princípio é um telefonema, uma visita. A instalação dos aparelhos PT Emergência foi um dos primeiros passos. Depois vão-se estreitando laços até que há confiança para pedir ajuda, quando há um problema. E as duas técnicas fazem de tudo: fazem compras ou levantam dinheiro, acompanham os utentes a uma consulta, ajudam a decifrar o texto de uma carta da Segurança Social, tratam de comprar uns óculos ou de mandar consertar uma janela ou um pavimento, sugerem que alguém tire um tapete em que pode tropeçar. Muitas vezes limitam-se a ouvir as histórias de quem deixou de ter com quem conversar.

Mafalda Ferreira segue na rua, saco com os bolos que esteve a embrulhar ao ombro, e vai encontrando vários utentes. Passa dona Augusta. "Então, já tratou das cortinas?", pergunta. "Ainda não." Levou-lhe tecido e pediu-lhe que fizesse umas cortinas que fazem falta na casa de dois utentes. A ideia é ir criando também relações dentro da própria comunidade."A doutora Mafalda apareceu aí, eu gostei logo dela, ela diz que gosta de mim e eu acredito", conta dona Isabel. "Se passo três ou quatro dias sem dar notícias, ela telefona-me logo a perguntar se está tudo bem." Depois há os voluntários, mas a ideia é que seja um voluntariado cada vez mais profissionalizado.

Mais visitas

O voluntariado aqui é também empresarial. Estão a ser estudadas formas de tornar o projecto sustentável, mas para já o apoio vem de várias entidades como a Fundação Montepio, a Fundação PT ou o grupo Jerónimo Martins. "Uma vez por ano fazemos um levantamento das necessidades das habitações", explica Mafalda Ferreira. "Este ano arranjámos uma janela, instalámos dois corrimões, com a ajuda da Fundação S. João de Deus [outro parceiro do projecto]."

No prédio de dona Isabel, um edifício de cinco andares com esquerdo e direito, só o seu apartamento e outro têm gente. Por baixo vive dona Carolina, viúva de 85 anos. Nasceu aqui, namorou aqui - ele sentado no cadeirão da sala, ela sempre numa cadeira, ao lado, como exigia o seu pai - e casou-se. Baptizou filhas e netas na Igreja de S. Nicolau.

Por entre as decorações de Natal há um anjo oferecido por Mafalda Ferreira noutra ocasião. Dona Carolina faz questão de o lembrar. O projecto de mais proximidade possui três níveis de intervenção: um mais urgente, para os que não podem sair de casa; um intermédio, em que existe alguma autonomia com apoio regular, e outro mais pontual.

Dona Carolina está nesse: consegue ser autónoma, tem a companhia da empregada todos os dias, da família que a vai visitando. Mas no final faz Mafalda prometer que volta dentro de dias para um lanchinho. Já a descer as escadas, a assistente social remata: "Esta visita foi importante para perceber que temos de reforçar o acompanhamento, fazer-lhe mais visitas."

(in Público)

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