segunda-feira, 17 de outubro de 2011

“Quem cantará canções de amigo no dia do meu funeral?”






“Quem cantará canções de amigo no dia do meu funeral?”
Por Maria Ramos Silva

Em oito anos, a Irmandade da Misericórdia e de São Roque acompanhou o funeral de 976 pessoas que morreram sem família, em Lisboa.


De Manuel e Bernardino sabe-se apenas que vão ser números, como números terminam todos os que aqui adormeceram quando bateu a hora da morte. A vida narrada ao segundo, sempre mais que banal matemática, só se adivinha por boa vontade da imaginação. Desconhecem-se os rostos no interior das urnas castanhas, fechadas aos olhos da terra que se abriu para servir de cama. As suas idades. As causas dos óbitos. A medida rigorosa da altura ou do peso. A aventura do nascimento ou a desventura certa de quem parte sem a despedida de quem lhes percebeu os passos. Ou mesmo se conheciam essa “Hora Íntima” que Vinicius cronometrou em versos de amor.
São apenas dois entre os 976 corpos que ninguém reclamou na cidade de Lisboa nos últimos sete anos, 80 dos quais registados entre Outubro de 2010 e Setembro de 2011, acompanhados nas suas cerimónias fúnebres pela Irmandade da Misericórdia e de São Roque.
No cemitério de Benfica, a marcha lenta segue a sombra dos ciprestes, que não discriminam nomes no manto de anonimato com que a morte cobre ricos e remediados. O coveiro que o conte, mecânico na enxada que ecoa em redor, alheio por natureza da missão à identidade dos finados. O mesmo se aplica aos agentes funerários, de automatismo sereno nos pró formes. Ou ao padre, incapaz de seguir o rasto de todo o seu rebanho na cidade grande, onde cada apelido é um lugar estranho. O pouco que muda é a assistência. A vontade quer acreditar que a marca em vida no mundo não se avalia pela dimensão de um cortejo que ensaia adeus sem lenços nem lágrimas, pois só assim se vence “um tratamento indiferenciado e frio.”
São cerca de oito os voluntários que se revezam nestes cortejos mínimos que seguem o último trajecto de homens, mulheres e crianças, na sua maioria sem família e sem abrigo. A Santa Casa assume as despesas do enterro a quem não o pode pagar. Anualmente, abre concurso entre as agências funerárias, que entram em campo quando o Instituto de Medicina Legal libertar os cadáveres, depois de um período de tempo que pode chegar a um mês, ou em alguns casos quase a um ano, sobretudo quando o processo para chegar às famílias se arrasta, como é frequente no caso de imigrantes sem documentos.
“Normalmente sabemos do funeral na véspera. Tentamos que seja tão digno como o das outras pessoas, que não seja o funeral dos pobres. Acreditamos que somos todos irmãos e tentamos estar presentes junto de quem não tem família. Vem um sacerdote acompanhar o corpo e trazemos um ramo de flores”, explica Mário Pinto Coelho, Irmão Primeiro Vice-Provedor.
A leitura do Ritual. A oração do Pai Nosso. A coroa branca no cimo da campa, rival em desvantagem das habituais pilhas de flores. Dez minutos bastam para consumar a prece. “Já viu o que é morrer e não saberem sequer o seu nome?” 494, 495. Pois claro. Ninguém quer ver tabuletas, padre Carlos. Pelas 10h30, o capelão do Hospital de São José começa a cerimónia; cortesia com “uma conotação confessional, mas sobretudo uma homenagem”, tanto mais se pensarmos que cada alma que aqui se encomenda dialoga com Deus como quer e sabe.
Novos e velhos de diferentes raças e credos. Gente que termina o caminho na rua ou num leito de hospital. Que se entende com criadores por via do mimo ou de indiferente mudez. “Queremos nos próximos anos fazer uma celebração que abranja outras confissões religiosas. Não fazemos distinções mas gostávamos que outras comunidades religiosas se associassem”, salienta Mário.
Hoje, dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, a partir das 18h10,a Irmandade da Misericórdia e de São Roque promove uma celebração eucarística na Basílica dos Mártires, na Rua Garrett, em Lisboa, na qual recordará o primeiro nome de cada número das estatísticas do último ano. As cifras anotadas desde 2004 arrepiam orgulhosos solitários crónicos. 976. Mais de 70 funerais de crianças.
“Ficamos sempre a pensar. Por vezes levamos com cenários que nos chocam. Às vezes é preferível nem aprofundar muito a história”, diz António, que acompanha estes serviços há dois anos, junto com a mulher, Maria Luísa. “É muito triste não ter ninguém. Como membro da irmandade cumprimos as obras de misericórdia, uma das quais é enterrar os mortos”.
O historial destes e de outros casos não é chamado para esta manhã, ou para tantas outras manhãs passadas no cemitério do Alto de São João ou do Lumiar, área muitas vezes definida pelo hospital onde morrem. Os serviços da Misericórdia têm conhecimento da ficha de identificação das pessoas, quando existe, mas os dados mantêm-se confidenciais. Para a irmandade, interessa apenas o primeiro nome para rezar na celebração eucarística. E para levar a melhor contra a solidão da morte.


(jornal «i»).

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