A ver aviões
por FERNANDA CÂNCIO
Sabe o que é um 'spotter'? Pois. Mas até há uma associação: gente que se perde a observar, fotografar e filmar aviões. Como este segurança.
As memórias mais antigas que tem da sua paixão são de Luanda, onde nasceu e onde o pai, funcionário público, o levava, de pequenino, ao aeroporto para ver os pássaros de ferro. "Era um programa de domingo, não havia muito para fazer." Mas o vício, acha, tomou-o por "viver no enfiamento do corredor de aproximação dos aviões ao aeroporto". Engolfado naquele rugido que o estremecia, tomava nota das matrículas (os números que identificam cada aparelho, inscritos na parte inferior da asa). "Durante muito tempo guardei religiosamente esses papéis, mas acabei por perdê-los." A perda dos papéis coincidiu com outras perdas: Rui, com a mãe e o irmão mais novo, juntou-se às centenas de milhar que na ponte aérea de 1975 demandaram "a metrópole". O pai ficou ainda uns tempos.
Podia ter ficado avesso a aviões por essa retirada forçada, com carácter de urgência, mas não. Nem sequer foi a primeira vez que andou num. "Quando vínhamos a Portugal nas férias apanhávamos o barco, mas dentro de Angola andei de avião algumas vezes, porque a dada altura fomos viver para Sá da Bandeira. Teria seis, sete anos, quando levantei voo pela primeira vez." Tem 16 quando chega com a família a Lisboa. Mais uma vez, tem um encontro marcado com o universo das máquinas voadoras: viver para o Montijo, ao pé da base aérea. Mas é só quando volta para Lisboa, nos anos 80, que se inicia naquilo a que chama "o meu hobby". "À hora do almoço ia até ao aeroporto, levava umas sandes e ficava junto à rede, a ver os aviões." Não sabia que havia mais gente como ele, a partilhar esse fascínio um pouco inexplicável pelos passarões barulhentos. Descobriu-o bastante mais tarde, e agora essa comunidade é um dos motivos que adianta para o que faz - "É não estar em casa, fechado, a ver TV... Ali estamos um grupo de amigos, falamos, comem-se uns petiscos, fazemos uns almoços... Mas quando em 2006 comprei uma máquina para fotografar os aviões não sabia que havia outras pessoas a fazerem isso. E todos os dias aparece mais gente a perguntar o que fazemos com as fotos que tiramos." E o que fazem? "Pomos nos blogues, guardamo-las numa base de dados..."
Segurança há cinco anos, Rui, que tem "o quinto ano do liceu", já fez várias coisas na vida, desde trabalhar "na parte de peças do ramo automóvel" a "numa empresa de equipamentos hoteleiros". Também andou, a dada altura, "emigrado", em Andorra, a preparar pistas de ski. "E andava sempre de máquina para fotografar os helicópteros."
O que para ele significa esta coisa dos aviões que o leva a ir todos os anos com um amigo ao Funchal por um dia (vão num avião e vêm noutro) para ficar lá a fotografar no aeroporto, programa que já fez também em Madrid, e que o levou a participar, em 2008, na formação da associação Portugal Spotters, não sabe explicar bem. "Admito que haja quem ache estranho. Mas há quem coleccione moedas e selos, não é? Há quem diga que isto é como coleccionar cromos, mas uma caderneta de cromos sabe-se como começa e acaba, e nós nunca sabemos como isto acaba." Pára para pensar. "Isto que fazemos é um bocado a história da aviação. Daqui a 20 anos ninguém se lembra como eram os aviões hoje, e nós vamos ter esse registo." Os aviões como espécie em evolução rápida, e os spotters como turistas em safari? "Sim, é quase uma caça. Como no dia da cimeira da NATO: havia centenas de pessoas à volta do aeroporto para fotografar o Airforce One. Sabemos lá se ele cá volta."
(in Diário de Notícias).
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