segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Esta imagem diz tudo.



O antigo salão de baile do Palácio Mello é hoje uma das enfermarias do Hospital de Santo António dos Capuchos (Nuno Ferreira Santos)


O que fazer aos antigos hospitais de Lisboa?
Alexandra Prado Coelho

Freiras em clausura, estudantes de Astronomia, relógios de sol, cisternas, instrumentos médicos usados por um Nobel da Medicina, sacristias monumentais, igrejas transformadas em arquivos, memórias do Colégio dos Jesuítas, do Asilo de Mendicidade, do antigo Hospital de Todos-os-Santos no Rossio, bibliotecas antigas esquecidas em cantos, doentes em enfermarias que já foram salões de baile - não imaginávamos que era tudo isto que íamos encontrar no que tinha sido anunciado como uma visita guiada ao património dos Hospitais Civis de Lisboa.


Um homem de bata branca vira a esquina empurrando uma maca com uma doente. O grupo desvia-se para o deixar passar e José Meco, especialista em azulejaria, interrompe por momentos o que estava a dizer. Estamos parados à entrada da sacristia do Hospital de São José, em Lisboa, a olhar para o painel de azulejos com cenas galantes e as explicações de José Meco sobre o que existia aqui no tempo em que o edifício abrigava o colégio jesuíta de Santo-Antão-o-Novo tinham-nos transportado para outra época, fazendo-nos esquecer que estávamos no meio de um dos maiores hospitais de Lisboa e que o mais natural seria passarem por ali macas e doentes.

"A mais grandiosa sacristia"

Avançamos por um corredor onde está montada uma venda de Natal. Há bonecos e panos bordados em cima de mesas e sofás. "Aqui era a capela-mor", vai dizendo José Meco, enquanto o grupo se estreita para passar no corredor. "E agora", anuncia, "vamos entrar na mais grandiosa sacristia de todo o império português". Estamos na zona de apoio à sacristia e pela porta entreaberta de um armário vêem-se os paramentos dos padres. Aparece o capelão, que, sorridente, nos convida a entrar.

Passamos por uma das portas com colunas retorcidas e estamos dentro da sacristia que terá sido construída pelo arquitecto João Antunes nos finais do século XVII. O espaço todo decorado com mármores embutidos, de diferentes cores, do rosa ao negro, e enormes arcazes (arcas) de madeira escura é hoje o único sobrevivente do que se imagina que terá sido a impressionante igreja do colégio dos jesuítas. O resto caiu parcialmente com o terramoto de 1755 e foi sendo desmantelado e pilhado nos anos que se seguiram.

"Este edifício é a grande obra dos jesuítas em Lisboa. A sacristia é das mais belas do mundo português. Aqui devia fazer-se o grande museu dos Hospitais Civis de Lisboa [HCL]", tinha dito José Meco no início desta visita organizada por Célia Pilão, uma das administradoras dos HCL, para um grupo de pessoas preocupadas com o que será o futuro deste património quando, como está previsto, este hospital e os de Santa Marta e Santo António dos Capuchos forem desactivados e vendidos (o conjunto integra também o antigo Hospital do Desterro, mas esse encontra-se já desactivado desde 2007). A venda faz parte do plano para a concentração destes serviços no novo Hospital de Todos-os-Santos, a construir em Chelas - o concurso para construção foi já lançado mas a data de 2012/2013 para a abertura parece neste momento difícil de concretizar.

O Estado vendeu à empresa pública Parpública (mais concretamente à sub-holding imobiliária Estamo) o conjunto destes hospitais ao qual se soma também o hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, que está já praticamente desactivado e prestes a ser encerrado. O conjunto espalha-se pela zona da colina de Sant"Ana, junto ao Campo Mártires da Pátria. O que irá acontecer ao património - parte dele classificado - integrado nestes hospitais?

A pergunta foi lançada pela administradora Célia Pilão num seminário realizado no início do mês na Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, em colaboração com o Icomos Portugal (Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios). O tom de José Aguiar, responsável do Icomos, foi de alarme. "Estamos a perder este património a uma escala nunca vista. Somos o país que mais perdeu habitações anteriores a 1919 em uso".

"Novas funções urbanas"

Quais são, afinal, os planos para a zona de Sant"Ana? A Estamo respondeu ao PÚBLICO por email, esclarecendo que "os hospitais de São José, Santa Marta e Capuchos vão continuar a funcionar normalmente até mudarem para o Hospital de Todos-os-Santos", que "o Hospital do Desterro já esteve à venda e não foi vendido", tendo o valor pedido sido o de 9,5 milhões de euros (uma das condições para a venda é a de que o espaço seja usado na área da saúde, para cuidados continuados), e ainda que "no Hospital Miguel Bombarda está a ser desenvolvido um plano de pormenor de acordo com a Câmara Municipal de Lisboa."Quanto à preservação do património classificado, a Estamo sublinha que esta "é uma imposição da CML para qualquer reconversão de uso" e que "os espaços dos hospitais podem ser usados para os fins definidos no Plano Director Municipal de Lisboa, que está em fase final de revisão." Prazos para a desactivação de São José, Santa Marta e Capuchos serão os da abertura do Hospital de Todos-os-Santos, mas a Estamo "desconhece o prazo previsto para essa entrada em funcionamento." No entanto, "está previsto que o Ministério da Saúde pague uma indemnização por ocupação desses hospitais enquanto não existir o novo hospital."

E o que diz a CML? Também em respostas por email, a câmara explica que o novo PDM prevê "a regeneração da área central de Lisboa, em concreto o eixo da Almirante Reis, onde se pretende inverter o declínio económico e social, introduzindo dinâmicas que promovam a inclusão social e a revitalização económica". A desactivação dos hospitais é vista como "uma oportunidade para a introdução de novas funções urbanas".

Para as áreas ocupadas pelo São José, Capuchos e Miguel Bombarda "preconizam-se usos mistos, através da mistura entre o uso habitacional e terciário, sendo que qualquer um deles não poderá prevalecer em mais de 70 por cento - ou seja, se 70 por cento da área ficar destinada a habitação, pelos menos 30 por cento terá de ser destinado a outros usos." Assim pretende-se "promover a atracção de novos residentes, de novas funções económicas" e localizar "novos equipamentos de apoio à função residencial que, face à escassez de terreno livre disponível na zona central, não seriam viáveis."

De qualquer forma, sublinha a CML, toda a transformação dos actuais hospitais "está condicionada à salvaguarda do património arquitectónico existente".

Mas de que falamos, afinal, quanto falamos do património dos hospitais? Falamos de uma história, que está por fazer, do que foram estes hospitais, mas também dos edifícios que existiam aqui muito antes de serem usados como hospitais - os antigos conventos esvaziados com a expulsão das ordens religiosas. É por isso que, sem nos apercebermos, andamos muitas vezes por locais que escondem ainda muitos segredos.

O Hospital de Santa Marta é talvez o melhor exemplo. Descemos a Rua de Santa Marta, passamos em frente do edifício da Universidade Autónoma de Lisboa, antigo Palácio dos Condes de Redondo, e quase não damos pela fachada de uma igreja, com uma porta pintada de um azul-desmaiado, logo antes de chegarmos ao edifício do hospital. Entramos por aí e à nossa esquerda temos o antigo Mosteiro de Santa Marta, onde as freiras clarissas viviam em reclusão, com a entrada desviada da rua principal, em tempos uma das principais artérias de Lisboa para quem subia das Portas de Santo Antão.

Decadência em Santa Marta

Atravessamos o claustro, todo decorado a azulejos (o Instituto de História de Arte da Faculdade de Letras de Lisboa está já a fazer o levantamento e registo de todo o património azulejar dos hospitais). Num nicho também ele forrado a azulejos está instalada a papelaria - revistas e jornais estendem-se em exposição por uma das paredes do claustro. À nossa esquerda uma porta dá acesso à capela do hospital. O antigo coro-baixo, de onde as clarissas, protegidas dos olhares indiscretos, podiam assistir à missa, foi recuperado e está impecável. Uma mulher reza ajoelhada por entre as paredes revestidas a azulejos e sob o tecto pintado com um medalhão no qual Santa Marta vence o dragão com a ajuda de água benta. O coro-baixo termina numa parede com arcos actualmente vedados. Acedemos ao outro lado por uma porta de vidro e, de repente, parece que entrámos noutro mundo. O espectáculo é desolador. A nave principal da igreja está transformada num armazém onde foi colocado o arquivo clínico do hospital. No lugar onde antes estiveram os bancos de madeira estão agora, a todo o comprimento da nave, estantes de metal a rebentar de pastas e arquivos.

As capelas laterais são depósito de material hospitalar fora de uso. Uma velha cadeira de rodas foi-se enchendo de pó. Sobrevivem as lápides de pedra do século XVII com os nomes dos fidalgos que se julga estarem ali enterrados e que terão sido mecenas da igreja - como Gaspar Vieira de Araújo, que no texto gravado na pedra declara a "muita devoção que tem a esta casa por ter nela duas filhas religiosas professas".

Alguns azulejos ainda estão protegidos por placas de acrílico mas a maior parte das paredes da igreja está vazia. Aqui e ali adivinham-se vestígios de pintura, e alguém pôs um plástico por cima, numa tentativa de proteger o que resta. Do lado esquerdo há uma porta grande que, percebemos agora, é a porta que no exterior dá para a Rua de Santa Marta - por onde antes entravam os fiéis e que hoje está fechada ao público.

A mesa de Egas Moniz

As filas de ficheiros médicos arquivados conduzem-nos a um tapume branco que separa o corpo da igreja da zona do altar-mor. A esse só se acede por outro lado, mas quando lá chegamos o cenário é igual: pilhas de cadeiras e mesas arrumadas a um canto, antigas balanças, divisórias brancas e verde-água usadas para separar os doentes no hospital. As paredes estão nuas - os altares em talha dourada e o retábulo há muito que foram levados para a Igreja de Santo António do Estoril. Resiste, em bastante mau estado, a lápide mandada gravar em 1598 pela mulher de Dom Diogo Lopes de Lima, nobre que com D. Sebastião "se perdeu em África". "Para que sempre dure esta memória se mandou fazer este letreiro", escreveu a mulher saudosa. No tecto há uma abertura em forma de rasgão. Se espreitarmos, conseguimos adivinhar lá por cima o antigo tecto de estuque trabalhado e colorido, que, não se sabe quando nem porquê, um dia foi tapado.

De volta ao claustro deparamo-nos com outra porta fechada. Na parede uma placa identifica o local como "Museu dos Hospitais Civis de Lisboa Doutor Alberto Mac-Bride".

É a Sala do Capítulo, onde, rodeadas de azulejos que contam as vidas de Santa Clara e de São Francisco de Assis, as clarissas se reuniam uma vez por semana, convocadas pela madre superiora. No meio da sala estão cadeiras de plástico branco e um quadro usados recentemente para uma acção de formação. E, arrumada a um canto, a mesa em que o Prémio Nobel Egas Moniz fez a primeira angiografia cerebral.

A mesa (que já foi emprestada para exposições internacionais) faz parte, tal como vários outros objectos médicos esquecidos dentro de estantes na Sala do Capítulo, do antigo museu baptizado com o nome do cirurgião Alberto Mac-Bride, inaugurado em 1957 e que terá fechado nos anos de 1970. O que sobrou desse museu - entre outras coisas, retratos de todos os enfermeiros-mores dos hospitais civis de Lisboa e a valiosa biblioteca de Mac-Bride - ficou esquecido em cantos poeirentos. A Aula da Esfera

Por todos os hospitais a situação é a mesma. Por entre a azáfama de doentes, médicos, enfermeiros, familiares em hora de visita, sobrevivem a custo pedaços de História. Voltemos a São José e à visita guiada por José Meco. No edifício principal subimos a escadaria seguindo as cenas de caça ou as aventuras militares contadas nos azulejos, até ao Salão Nobre.

"Estamos na Aula da Esfera", anuncia agora José Meco. "Temos aqui um conjunto de azulejos verdadeiramente singular. Este era um dos grandes espaços da cultura europeia, todo o conhecimento da Astronomia, de Estratégia Militar, de Balística, passava por aqui." Aponta em volta: "Isto é um compêndio do conhecimento científico da época."

"Notável a vários títulos, este colégio [de Santo Antão] tem sobretudo um lugar de destaque devido ao ensino científico que aí se ministrou e às actividades em que os seus professores e alunos estiveram envolvidos, na chamada "Aula da Esfera", uma classe especial de assuntos científicos", escreve Henrique Leitão em A Ciência na "Aula da Esfera".

Aqui, desde os finais do século XVI, aprendia-se Cosmografia, Astronomia, Aritmética, Álgebra, Trigonometria, Náutica, Geografia, Cartografia, Óptica. Em alguns períodos, explica Leitão, quase todos os professores foram estrangeiros. Nos azulejos há soldados a incendiar navios com espelhos, estrategos militares a planear operações, e anjinhos a pôr em funcionamento complexas máquinas de fazer nuvens.

Do outro lado da colina de Sant"Ana fica o Hospital dos Capuchos, no local do antigo Asilo da Mendicidade fundado em 1836 por D. Maria II no Convento de Santo António dos Capuchos. José Meco conduz-nos directamente à igreja. Também esta já funcionou como arquivo (a partir de 1954), mas entretanto foi parcialmente restaurada e devolvida à sua função - com enorme sucesso, conta Célia Pilão, porque o capelão atrai multidões às missas que ali dá.

É esse capelão, de sorriso caloroso, que encontramos mais à frente junto a uma cisterna decorada a azulejos e que tem por cima um relógio de sol de 1586 que, segundo António Matoso, que estudou a história do hospital, é o mais antigo do género que se conhece em Portugal. As duas peças terão acabado juntas nos finais do século XIX quando o provedor do Asilo decidiu fechar a cisterna, supõe-se que por um dos asilados ter ali cometido suicídio, conta Matoso nas suas notas sobre os Capuchos. Hoje, cisterna e relógio de sol constituem um dos pedaços de património classificado no meio do hospital.

Habitação T0 a T9

Outro cenário inusitado é o que encontramos no Palácio Mello (século XVIII) que foi anexado ao hospital e que, de acordo com Matoso, foi tão transformado que hoje do original só resta a entrada nobre e os azulejos do século XVIII que decoram os dois andares.

O antigo salão de baile da família Mello está muito apropriadamente decorado com arquelins e columbinas, festas, danças e cenas galantes. Mas hoje é usado como enfermaria de senhoras e, para além de dois sofás e de um televisor sintonizado numa telenovela brasileira, são as camas e toda a parafernália médica que se encostam às paredes onde no passado se terão encostado donzelas afogueadas à espera de serem convidadas para uma dança.

Como é que este património pode ser integrado nos novos planos para a zona? No seminário realizado na Faculdade de Arquitectura houve até quem pusesse em causa a saída dos hospitais destes edifícios, mas houve também quem defendesse que estes, que nunca foram pensados para serem hospitais, não têm condições para continuar a sê-lo, sobretudo tendo em conta as novas exigências para este tipo de equipamentos. Além disso, a criação de novos hospitais na cintura de Lisboa (Amadora-Sintra, Cascais, Vila Franca de Xira e o previsto hospital de Loures) e a tendência para a redução do tempo médio dos internamentos faz diminuir a necessidade de camas no centro da cidade (o novo Hospital de Todos-os-Santos deverá ter perto de 800 camas). O que poderiam ser, então, estes espaços? "Tem de ser feita uma avaliação do valor e das capacidades de cada um para que o Estado diga que funções podem ser mantidas ali", diz José Aguiar, do Icomos. Não exclui que uma parte seja usada para habitação, mas defende que é preciso pensar em "diferentes tipologias", dos T0 ou T1 aos T7, T8 ou T9, "habitações colectivas, por exemplo, para estudantes ou para profissionais que estejam temporariamente destacados na cidade".


(in Público).

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