sábado, 6 de novembro de 2010

Um dia de chuva.





Indo eu

Um dia de chuva
Por Ricardo Garcia

Entre o local onde eu estacionara o carro e a estação do comboio mediavam cerca de 200 metros, não mais do que isto. E foi nesta fracção relativamente reduzida da longitude terrestre que o mundo pareceu acabar.

A princípio, quando abri a porta do carro e pus os pés de fora, era uma chuva normal. Molhava, mas aguentava-se. Depois, porém, veio o dilúvio. E bastou eu afastar-me do automóvel até a um ponto sem retorno e sem hipótese de fuga, para que o céu desabasse sobre a minha cabeça, em verdadeiro cataclismo apocalíptico.

Há vários tipos de precipitação: a miudinha, a molhadeira, o aguaceiro, a tempestade, a tromba d"água. Aquela, no entanto, escapava a qualquer tentativa de definição. Os pingos vinham em dimensões superlativas, em quantidade inumerável, com velocidade estonteante e energia cinética brutal. A certo ponto, deu-se o fenómeno. As gotas aglutinaram-se numa massa una e a sensação era de que um gigantesco balde de água estava a ser despejado sobre o meu flagelado organismo.

Quando finalmente cheguei ao cais de embarque, encontrava-me em condição de absoluta miséria meteorológica. O casaco, encharcado, drenava para as calças, grudadas às pernas como se eu tivesse pulado, vestido, para dentro de uma piscina. Os sapatos convalesciam da sua dupla má sorte funcional: a de servir de frente de combate, perdido aliás, contra os charcos no caminho e a de derradeiro receptáculo de toda a água que escorria do resto do corpo. Enregelado, pus-me à espera do comboio, notando que, obviamente, todos me observavam - uns com pena, outros com horror e alguns a achar imensa piada ao meu infortúnio, corroborando assim a natureza humana. Ao menos uma senhora inglesa, que também apanhara a mesma molha, dirigiu-me um sorriso simpático e um aceno de cabeça, em reconfortante acto de solidariedade climática.

Simpatia, no entanto, não seca a roupa. Eu tinha à frente 30 minutos no comboio, mais 20 no metro, até conseguir chegar a algum refúgio onde pudesse tomar alguma atitude remediadora. Era muito tempo, tinha de improvisar uma toalha.

Felizmente, os jornais gratuitos ainda não morreram - e recomendam-se. Apanhei dois exemplares, reparti-os em quatro partes e enrolei-as sobre as pernas e coxas, à guisa de absorvente pluvial. E assim segui viagem, num arranjo vestuário que certamente faria sucesso na Moda Lisboa. A senhora inglesa, que já me sorrira antes, agora ria abertamente, em fraterno bom-humor britânico. Mas outros, nem tanto. Dois passageiros fizeram menção de se sentar ao meu lado, mas seguiram em frente, em desastrada manobra, perante a minha triste figura.

Os jornais ensoparam rapidamente e tive de os substituir duas vezes, revestindo o chão à minha volta com um sortido caótico de papéis molhados. Por sorte, o revisor não passou naquele dia, senão atirava-me para fora do comboio, por mau comportamento sanitário.

À chegada no Cais do Sodré tive de despir o jornal. As calças, estas, já não pingavam mas ainda se apresentavam molhadas, em constrangedora sugestão de incontinência. Não havia nada a fazer. Segui para o metro, espirrei sete vezes e cheguei finalmente à estação Picoas, onde desci, húmido até aos ossos, rumo a um dia de trabalho.

Ricardo Garcia (in Público).

Sem comentários: