sábado, 3 de abril de 2010

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Pavilhão de Segurança

Olhos, ouvidos, coração e cabeça abertos. Olha, escuta, sente e pensa, faz sentido o que se passa à tua volta: um em cada cinco portugueses, dizem os jornais, sofre de perturbações psiquiátricas. Muito mais do que espanhóis, franceses, italianos. Até parecemos norte-americanos, estamos quase lá, na «prevalência da doença mental», ao menos numa coisa.
Cem anos de República. Eu estava no gabinete de Miguel Bombarda a ver o buraco de bala no quarto da parede, atrás da secretária. Tudo igual desde que deram os tiros no psiquiatra. Uma bala furou a tela com o marechal Saldanha, a centímetros da testa do militar, por pouco morria também o retrato a óleo dum homem. Foi um doente mental que assassinou Bombarda, o perigoso republicano, ou um atentado político camuflado? Dúvidas desde 3 de Outubro de 1910 até hoje, Bombarda agonizou do meio-dia ao fim da tarde, depois os amigos dele nem velaram o corpo, saíram para a guerra, organizados, e, dois dias mais tarde, entre caos e mortos na Rotunda, no alto do Torel, em Arroios, dos tiros, explosões, da alegria popular na Praça do Município, proclamavam a República.
Agora entro no belo Pavilhão de Segurança, ao fundo do hospital, entre pássaros e gatos vadios. Miguel Bombarda, com o arquitecto José Maria Nepumoceno, pensou numa forma pura, função perfeita e racional. Um edifício em círculo, torre de vigilância ao centro (desaparecida), bancos sem arestas, iluminação solar. As celas viradas para o pátio, o pátio para o céu livre, as portas com um óculo que parecia escotilha de barco. Aqui estiveram, de 1896 a 2000, doentes perigosos, assassinos e alienados que antigamente ficavam a vida numa prisão. E artistas e poetas como Ângelo de Lima, da revista Orpheu, e aqui se filmou a si mesmo, recordando a «casa amarela», um João César Monteiro a correr às voltas como um lúcido.
Vejo, no museu do pavilhão, os aparelhos de choques eléctricos, a voltagem nos mostradores, o leque da agulhinha, encosta-se do branco ao vermelho, parecem rádios de ouvir novelas, microondas anacrónicos. Vejo as pinças nobelizadas do estojo médico de Egas Moniz, um espigão metálico entrava aqui no canto do olho, uma pancadinha e pronto, acabou-se a angústia nesse lobo do cérebro, caro senhor, vá em paz, mas não foi por isso que ficou na História. Nos anos 50 chegaram os psicofármacos, anuladores, em parte, do terrível sofrimento da doença psiquiátrica. Os jornais dizem que a lista internacional de doenças mentais vai aumentar para 300. Em breve poderão ser oficializadas, a par da depressão, da esquizofrenia, as novidades compulsão alimentar, distúrbio de humor disfórico, desejo sexual coercitivo e, desta gosto, a acumulação de bens… A prevalência já não será de um em cinco portugueses, mas maior, com metade de Portugal a enganar a outra metade.
Estou no hospital Miguel Bombarda e converso com homens e mulheres que são aqui acompanhados, mas não internados. Perguntam-me muitas coisas sobre o suicídio, sou do Alentejo e escrevi um romance sobre o mistério, no qual pergunto e se eu gostasse muito de morrer?, é só uma pergunta, nada sei, apenas o que vi, a colega que deu um tiro na cabeça, outro no coração, ainda engoliu comprimidos e não morreu, o amigo que se enforcou, o vento suão que esfarela os ossos, uma pessoa querida disse-me
- não gosto de pessoas que se matam, é uma falta de educação
mas não fui por aí, nem sempre é doença, mas uma tristeza, uma escuridão, digno acto ridículo, mágoa de amor, não se sabe, num soldado pode ser coragem de morrer para salvar outros. Estou sentado com pessoas e tento dar respostas, numa tarde inesquecível no Miguel Bombarda, línguas emperradas, clareza, silêncio e verborreia, dois jovens em cadeira de rodas. E só no fim, duas horas depois, me dizem que todos o tentaram, com maior ou menor gravidade, como se vê em cada um. Gosto de pessoas corajosas e queria ver-vos seguros da vida, para sempre.

Rui Cardoso Martins
(in «Pública», de 28/3/2010)
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