quinta-feira, 18 de março de 2010

Bairro.


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De manhã a rádio ensina-me que a freguesia onde vivo, em Lisboa, tem um terço dos prédios em mau estado. Saio para contar as fachadas com manchas, chagas e varizes. Depressa me perco se os miúdos da rua chutam uma bola do beco para a estrada, se o barbeiro indiano olha para a televisão enquanto manobra a tesoura ou se um navio vermelho se esforça no Tejo. Na rádio disseram que, no país inteiro, há 135 mil casas em risco de ruína, que só em Lisboa são mais de mil prédios. E eu quero mais números no meu bloco de notas. Mas assim que me ponho a contar varandas com buracos e bandeiras esfarrapadas, passa por mim um cão galdério e atravesso uma conversa, de janela para janela, entre velhas de bata. Quero zangar-me com o governo porque diz que tem um plano previsto enquanto a cidade apodrece há décadas. Quero insultar a autarquia, os proprietários, a economia e os turistas a quem tanto encanta a decadência como a luz da cidade. Quero imitar os voluntários americanos que, em Julho de sol a pique, arriscavam a desidratação enquanto pintavam as paredes sujas do meu bairro. No entanto, como habitante moderno desta Lisboa antiga, distraio-me com o cheiro a grelhados, o sino a dar horas ou o samba que sai da janela de um rés-do-chão. E. B. White, cronista entusiasta de Nova Iorque, percebeu tudo isto muito antes de mim: "Acordo dividido entre o desejo de melhorar o mundo e o desejo de desfrutá-lo. Isso dificulta o planeamento do meu dia". Regresso a casa. Tenho o encanto desbotado do meu bairro e uma crónica na cabeça. Não tenho ainda a cidade que quero.
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Hugo Gonçalves, escritor, jornal «i»
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