quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Charles Darwin na Baixa de Lisboa.


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Ruas temáticas resistem à evolução
Comércio especializado que caracteriza algumas ruas da Baixa sobrevive. Mas os tempos áureos já lá vão...

"Ai, chega chega... ó minha agulha. Afasta afasta...ó meu dedal" são versos que se podiam ouvir na Rua da Conceição. Conhecida por ser a rua da Baixa lisboeta onde se concentram as retrosarias, a música cantada por Beatriz Costa ao interpretar Alice, uma costureira filha de alfaiate, no filme A Canção de Lisboa, não lhe cai mal.

Quando o filme se estreou em 1933 muitas das retrosarias que nos dias de hoje mantêm as portas abertas já ali existiam. Desde então que costureiras, e não só, se deslocam até àquela artéria "onde há de tudo".

E a Rua da Conceição ainda parece ser "o mundo das retrosarias". Zélia Cardoso e Maria Albertina Santos começaram novas na costura e ainda hoje se abastecem ali. "Venho cá desde os 12 anos. Acabava-se a escola ia-se para o ofício", conta Zélia de 59. As mãos habituaram-se à arte e por entre agulhas e dedais também Maria Albertina de 63 anos conta com 30 a comprar na Rua da Conceição. E da Retrosaria Adriano Coelho Ld.ª, da qual também é cliente habitual, realça a variedade de botões.

Os negócios sobrevivem muito graças aos clientes fiéis, lembra Guilherme Pais, da Adriano Coelho, casa fundada em 1912. Guilherme tinha 13 anos quando ali começou a trabalhar. Desde 1978 a retrosaria está a seu cargo e de outro sócio. E mantém os traços característicos, como os móveis de origem e o gosto pela profissão.

Também Mário Carreira da J.R. Silva Ld.ª começou cedo. E as memórias dos tempos idos fazem de facto parte da história destas casas tradicionais. "A mulher do ex-presidente da República, Américo Tomás, parava aqui o carro da presidência e dizia: "Ai, o meu banquinha.". Sentava-se ali antes de fazer as compras e não saía sem dizer baixinho: "Não se esqueça do meu desconto", conta Mário Carreiro.

Retroseiro desde 1960, naquela casa fundada no início do século XX, recorda as filas de clientes até à porta. Actualmente "vai-se sobrevivendo com esforço", diz. O banco de madeira continua à espera de clientes que queiram descansar após longos passeios pela Baixa, como nos velhos tempos.

Na Rua do Arsenal, conhecida como a Rua dos Bacalhoeiros, o cheiro a maresia é um tempero característico. A rua já viu fechar algumas casas de bacalhau e seus derivados. Hoje contam-se três a perpetuar a tradição. Darcílio Domingues, trabalha há quase 20 anos na Pérola do Arsenal, mas "desde miúdo" que se dedica a trabalhos em que lida com bacalhau e hoje conhece-lhe as características. "O bacalhau pequeno come-se, mas o maior é mais saboroso", conta o paladar de quem sabe.

Há quem procure o bacalhau nestas lojas tradicionais pela qualidade, mas a época alta ainda é no Natal, afirmam. No Rei do Bacalhau, no número 56-58 da Rua do Arsenal, também se sabe como escolher o melhor. "O segredo é ver se está bem curado de sal", explicou Inês Fernandes, que trabalha naquela casa há uma década.

Muitas das lojas tradicionais da Baixa são negócios que atravessam mais de um século na mesma família. Na Rua Áurea, a Ourivesaria Sarmento, a comemorar 140 anos, está a cargo da quinta geração da família Sarmento. A sexta também já ajuda, durante as férias, ainda que o futuro dos mais novos posso já não passar por ali.

Embora reconheçam que a "actual conjuntura" não é a mais favorável e que há carência nas "metodologias políticas" pensadas para a baixa, o desafio tem sido não baixar os braços, contou Rodrigo Sarmento, da ourivesaria centenária. Na Rua Áurea, conhecida como a rua do Ouro, mantém-se algumas ourivesarias, joalharias e relojoarias que ainda defendem o nome daquela calçada.

Com algum esforço e até criatividade a tradição acompanha a passagem dos séculos, ainda que se vejam portas a fechar e os bombings nas paredes descaracterizem o espaço e tragam prejuízo. É assim a baixa lisboeta a tentar resistir no tempo.

(in «Diário de Notícias»).

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