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Não, não me perguntem onde fica ou como aqui cheguei. Nem me questionem sobre que destino é este o meu. Aqui estou, apenas. Numa tarde muito quente com cães ao fundo. Ladram pela minha presença. Esperavam por mim? Porque vim aqui, numa tarde de sol? Talvez seja eu louco - e o mundo, uma ilusão crescente. Talvez haja isso tudo, não sei. Só não me façam perguntas.
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Reconheço que há gritos na minha cabeça. E há mágoas que trouxe e outras que daqui levarei; daqui levarei mágoas muitas para juntar à colecção das mágoas.
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Uma mesa e plantas no meio do cimento hostil. E, por baixo dela, um cão adormecido. Não, não me perguntem como aqui cheguei. Nem eu sei o que aqui me trouxe. Verdadeiramente, nem eu sei o que aqui me trouxe. Mágoas muitas. Uma colecção delas.
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Ao fundo dos fundos do pavilhão vazio, um amontoado de objectos. A estrutura, familiar. A estrutura familiar.
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A nave é enorme. Os gritos dos cães ecoam por cima de mim muito alto. Cães danados. Calem-se! Porque não se calam?
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E não me perguntem se eu aqui vi um quarto muito arrumado.
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Não sei o que é isto. Talvez Lisboa. Uma cama de casal, com lençóis dobrados. Uma mesa de cabeceira. Um carro de compras. Uma lata de «spray» contra insectos. Talvez Lisboa. Não sei o que é isto.
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Não sei se vi um espelho, um despertador e um cinzeiro. Um creme hidratante e caixas de metal. Se aqui está, é porque vi tudo isto.
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Não sei se vi um espelho, um despertador e um cinzeiro. Um creme hidratante e caixas de metal. Se aqui está, é porque vi tudo isto.
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Sim, era verdade que o quarto estava separado do resto das coisas. Formava uma divisão à parte, lembro-me agora. Alguém tivera o cuidado de separar o quarto do resto da casa e dos cães.
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Passei por um sítio a que nós chamamos mesa de refeições. A mesa estava posta e limpa e arrumada e era como se estivessem à minha espera. À minha espera para me devorar. Para mostrarem como vivem e assim devorarem um pouco de mim. Conseguiram-no.
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E não me perguntem se aqui há um casal que vive aqui, claro que há um casal e claro que há aqui uma criança. Este é o castelo de brincar de uma criança. No meio de uma nave enorme, onde uivam cães e ventos ao calor de uma tarde que aguarda agosto. Castelo da Princesa dos Cães.
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Os cães servem para guardar o local. São cinco.
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Cães agrestes na cidade violenta. Trieste é triste.
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Não me perguntem se chorei porque eu não chorei. E eu choro porque nunca choro. Devia chorar em vez de guardar na colecção das mágoas.
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Junto à casa de brincar, a despensa. Croissants. Nunca fui a Copenhaga, sabiam? Acho que nunca vos tinha dito. Nunca fui a Copenhaga. Nunca lá fui.
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Aos fiordes da Noruega. Também nunca lá fui.
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Aqui, não percebi. Era mesmo ao lado do quarto e do castelo.
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Estes cães ainda me vão morrer sem nunca terem visto os fiordes.
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Era tempo de me ir embora, copenhaga estocolmo paris stockholm oslo escócia, escócia e mais escócia. Nunca fui à Escócia. Acho que nunca conseguirei sair daqui.
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Não consigo sair daqui. bruxelles miranda do corvo. Não consigo sair daqui!
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Sou demasiado velho para partir, mas suficientemente novo para ainda desejar fazê-lo. Em suma: estou lixado.
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Têm razão: estou lixado, não é? Mas vocês aí, vocês também estão lixados. Riem-se, julgam que não? Vocês estão todos lixados. Todos, mas todos lixados. Isto são vocês, não sorriam. Não digam que eu estou louco ou armado em parvo a escrever à lobo antunes porque vocês estão tão lixados como eu.
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Têm razão: estou lixado, não é? Mas vocês aí, vocês também estão lixados. Riem-se, julgam que não? Vocês estão todos lixados. Todos, mas todos lixados. Isto são vocês, não sorriam. Não digam que eu estou louco ou armado em parvo a escrever à lobo antunes porque vocês estão tão lixados como eu.
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Isto é a minha casa. Estou lixado. Estou lixo lixado. faz muito calor em lisboa e eu tenho sede
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Fiquei aqui. Sou daqui. Posso nunca aqui vir mais, mas sou daqui e não sou dos fiordes.
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Eles matam-se muito lá naqueles países.
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Não consigo sair daqui. E não consigo que isto saia de mim. Daqui de mim.
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Isto é a minha casa. Estou lixado. Estou lixo lixado. faz muito calor em lisboa e eu tenho sede
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Fiquei aqui. Sou daqui. Posso nunca aqui vir mais, mas sou daqui e não sou dos fiordes.
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Eles matam-se muito lá naqueles países.
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Não consigo sair daqui. E não consigo que isto saia de mim. Daqui de mim.
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Sei que nos anos que me restam isto não vai mudar. Pode melhorar um pouco, mas não vai mudar. Tem melhorado, dizem eles. Mas não a um ritmo a que eu ainda possa ver paris em lisboa.
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Dizem que paris é
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lindo
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A correr, ainda vejo um triciclo de plástico.
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Fujo pelo meio da roupa estendida ao sol, a secar no bafo da brisa de uma tarde de julho muito quente.
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Há sempre um cão que se despede de mim. E que me diz que, a partir de agora, eu sou ele. Eu sou ele, pois. Cão que uiva quando estranhos se aproximam. Eu sou o cão dos fiordes. E sinto-me invencível.
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feito nas mágoas do mês de julho do ano sem graça de 2009, como se eu fora o filho deles que brinca ao castelo da princesa dos cães
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Há sempre um cão que se despede de mim. E que me diz que, a partir de agora, eu sou ele. Eu sou ele, pois. Cão que uiva quando estranhos se aproximam. Eu sou o cão dos fiordes. E sinto-me invencível.
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feito nas mágoas do mês de julho do ano sem graça de 2009, como se eu fora o filho deles que brinca ao castelo da princesa dos cães
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3 comentários:
Verdadeiramente impressionante este testemunho fotográfico!
Deixa-nos a pensar em quem viverá nesse castelo e porque motivo aí chegou...
Deixa-nos a pensar em quão vã e frágil é esta nossa vida, que, de um momento para o outro, pode mudar 180º...
Deixa-nos, sobretudo, tristes por permitirmos que, em pleno século XXI, a miséria humana atinja este ponto :(
Muito obrigada pela partilha deste testemunho.
Que testemunho fotográfico tão realista. Em pleno sec21 ainda há pessoas a viver assim... em plena capital de um país europeu...
Impressionante. Obrigado pelo post, do país dos fiords.
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