Adega Machado. O novo fado de um petisco com história
Por Maria Ramos Silva
Depois de três anos fechada, a casa com 75 anos de vida reabre hoje ao público na Rua do Norte, em LisboaA curiosidade da cabeleira grisalha interrompe as manobras de última hora. Não é para menos. Os oitenta e muitos anos da vizinha assistiram em directo à crónica das visitas ilustres, como Kirk Douglas e Eusébio, que garantiram a posteridade nas fotografias a preto e branco. Acompanharam também de perto o desatar das vozes do fado que aqui cantaram e encantaram ao longo das últimas décadas. Mais de três anos depois do fecho, todos querem conferir as andanças na renovada Adega Machado. “É natural que as pessoas do bairro tenham passado por esta história toda”. Antero Jacinto, um executivo braço-direito da equipa de sócios-gerentes, importa o saber acumulado na área da restauração para os afinamentos de uma casa com os dois pés no presente.
Do mítico número da Rua do Norte sobreviveu apenas a fachada com o colorido painel de azulejos do pintor Tom de Melo, bem como as janelas e portadas, fieis à traça arquitectónica dos anos 30 que arrebatam os forasteiros que navegam pelo Bairro Alto. “Não há um estrangeiro que passe aqui e não leve uma fotografia desta fachada. Neste momento, deve estar em todo o mundo”, confia o nosso guia no final de uma conversa no interior do espaço, onde se escuta o timbre do século XXI, num projecto de arquitectura assinado por Luís Candeias.
Depois de mais de um ano de obras de fundo, a casa reabre hoje ao público pela mão de três sócios-gerentes ligados à área da restauração e turismo, Armando Fernandes, João Pedro Ferreira-Borges e João Fevereiro, do grupo Fado&Food, que detém o café Luso há cerca de 15 anos, também no Bairro Alto, e o Timpanas, em Alcântara, já lá vão mais de três décadas. Uma combinação de sinergias que permite “maior capacidade de resposta”. “Podemos gerir as pessoas de uma forma mais polivalente. A situação não é a melhor para investimentos destes mas sentimo-nos realizados pelo que fazemos nas três casas. Armando Machado também criou isto a pensar na continuidade”, lembra Armando.
A visita A Adega apresenta-se com três espaços distintos: uma sala principal com capacidade para 110 pessoas e serviço à carta, uma taberna moderna no piso inferior com serviço de vinho a copo e petiscos portugueses com um toque gourmet, e ainda um terraço com serviço de bar, até agora desaproveitado, ideal para os fumadores, e aberto ao público em geral. “Apesar de ser uma casa de fado, queremos que os cocktails nacionais e internacionais funcionem. Um japonês pode chegar aqui e pedir uma caipirinha. Queremos que o cliente não pense que aqui só se vende sangria, apesar de também se vender”, explica Antero.
Seguindo a experiência do Luso e Timpanas, preparam-se para a afluência da assistência russa. Os brasileiros também acorrem em massa. “Vêm sempre a pensar no caldo verde e no bacalhau”. Já para não falar dos fervorosos japoneses, assíduos durante todo o ano. “O público estrangeiro deve ultrapassar os 90%”.
A programação está a cargo de Marco Rodrigues, empregado do Luso que se relevou como fadista, que será um dos artistas residentes, a par de Pedro Moutinho, Isabel Noronha e Joana Veiga. Ao elenco fixo juntam-se convidados como Celeste Rodrigues. “Por princípio não é fado vadio. Temos uma responsabilidade perante os nossos clientes”, defende Armando, ciente de que a canção nacional casa melhor com a lua. “Cantar o fado ao almoço não dá. É algo muito solene que exige silêncio e concentração. É à noite que pensamos na saudade”.
Sem nostalgias, o chefe Alex Gregório, que já comandava as iguarias do Luso, acumula a liderança das duas unidades, propondo um menu baseado em pratos tradicionais com um toque de reinvenção. O chouriço em pãezinhos de polme e confite de limão encontra-se com o lombinho de bacalhau braseado com batatinhas a murro, grelos e cremoso de pimento assado. Há ainda esferas de morcela, nacos de vitela guarnecidos com presunto em juliana e ovos de codorniz estrelados e macedónia de frutas ao vinho do Porto para sobremesa, entre outras sugestões. O preço médio situa-se nos 50€ (sem vinhos) e nos 75€, incluindo as bebidas.
Refeições com vista para as memórias restauradas, patrocinadas pelo espólio que forra as paredes, cedido pelos descendentes do fundador, o viola Armando Machado, que em 1937 fundava a Adega Machado no Bairro Alto, a segunda casa do género no bairro, a primeira a oferecer espectáculos diários. Autor de vários temas musicais para fado, como Fado Súplica, Fado Cunha e Silva, Fado Licas, Fado Maria Rita, Fado Lourdes e o celebre Bolero Cigano da Fronteira, casou-se com Maria de Lourdes, que deixou a profissão de enfermeira para se associar ao marido na gerência da Adega, começando a cantar . “Tivemos a felicidade de retomar a história. E a história está toda contada. Há dias o senhor Filipe Machado, filho dos fundadores, perguntou se podia vir cá ver o espaço. Disse para se preparar para verter uma lágrima ao ver reproduzida aqui toda uma vida”.
Rua do Norte, 91, Lisboa; 213 224 640
(jornal «i»)
Sem comentários:
Enviar um comentário