quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

São Lázaro: dos livros.






São Lázaro. A idade adulta do berço público da literatura infantil
Por Maria Ramos Silva,

A biblioteca municipal mais antiga de Lisboa guarda 6 mil volumes. Um oásis para nostálgicos e investigadores com dedo da Carbonária



O ponteiro estacou nas quatro horas. O velho relógio a um canto da sala deixou de cronometrar esse tempo congelado que certos gestos alimentam com zelo. Dia após dia, o coordenador encarrega-se de virar a folha do calendário na parede. Uma modalidade arcaica de contar os dias; um detalhe pitoresco que não podia casar melhor com o espírito da biblioteca pública mais antiga do município de Lisboa. Mas calma com o frio na freguesia da Pena. O número um da Rua do Saco tem aquecido o presente.

As estantes da Biblioteca de São Lázaro abrigam a primeira colecção em Portugal que reúne 79 anos de mercado editorial infantil. O espólio “Memórias de Outras Infâncias” tanto condensa ficção como obras genéricas de referência enciclopédica, marcadas por uma Classificação Decimal Universal, procedimento corrente nas bibliotecas nacionais. As obras, mais de 6 mil volumes, recuam a 1900 e a sua data de origem prolonga-se até 1979, ano que coincide com a declaração do Dia Mundial da Criança.

“Nem a Biblioteca Nacional a tem reunida desta forma, e temos alguns exemplares que a biblioteca também não tem. A nossa ideia é começar a expandi-la, prolongá-la até aos nossos dias, reunir nesta biblioteca, a primeira da rede, a maior colecção de literatura infantil sistematizada”, explica Susana Silvestre, chefe de divisão da Rede de Bibliotecas, do Departamento de Acção Cultural.

Potenciar a investigação no interior deste edifício único, que reúne uma escola primária, salas de biblioteca que correspondem a antigas salas de aula e espaço para os mais pequenos, com actividades, é o objectivo de São Lázaro. A antiguidade da colecção, um pequeno oásis para especialistas e discentes na matéria, recomenda cautelas no acesso aos títulos que se escondem atrás das vitrinas dos móveis. Dada a raridade das obras, não é permitido o livre acesso; a consulta é local e condicionada. Convém por isso fazer-se acompanhar de um pedido explícito de uma instituição para manusear os títulos, podendo, no entanto, lavar a vista sempre que quiser.

Raridades Alvo de teses de mestrado e doutoramento já em curso, não é difícil perceber que os principais destinatários destes livros estão longe de ser petizes. Um conjunto de maravilhas em papel e em pano, versões ilustradas, edições raras, pérolas extraídas da velhinha colecção Manecas, contos de finais de 70 de Sophia de Mello Breyner, memórias de Gago Coutinho repescadas por Adolfo Simões Muller ou a “Gata Borralheira” são alguns dos colírios para adultos.
“Ao expandi-la, começámos a criar dinâmicas de forma a conseguirmos parcerias com universidades, ao nível de pós--graduações, mestrados, doutoramentos, mesmo Espanha, começando a trabalhar com a Fundação Ruipérez, especializada em literatura infantil, e pensar numa exposição itinerante de promoção da colecção, para estar em congressos, seminários sobre o assunto”, adianta a chefe de divisão.

Foi por acaso que a colecção foi ganhando vida neste espaço, apesar de a arquitectura da sala e a relevância histórica na rede de bibliotecas terem contribuído para a feliz reunião, na sequência de uma série de resgates de fundos de depósito; de uma parceria com a Universidade Aberta, através da professora Glória Bastos, especialista em literatura infantil, e de um outro incentivo que deu o mote para sistematizar a operação. “Havendo dificuldade com aquisições, temos recebido em doação algumas preciosidades”, lembra o coordenador Jorge Trigo.

A visita não se fica pela área nobre de São Lázaro, que viu a sua colecção estrangulada quando para aqui foi transferida em tempos a colecção Manuel Ruela Pombo, biblioteca pessoal do padre que percorrera as ex-colónias e entretanto rumou a Belém. Realizam-se encontros de poesia, lançamentos de livros, conferências, música, que atraem curiosos, fregueses da Pena que desconheciam as relíquias ou antigos alunos da escola.

“Em tempo de crise as bibliotecas têm um potencial imenso. Não estão paradas no tempo; não são espaço nem de culto nem de silêncio. Queremos transformá-las em centros culturais de proximidade.” Susana Silvestre não tem dúvidas. O hábito de frequência mantém-se activo. As Galveias recebem 500 pessoas por dia; a Orlando Ribeiro e a Camões seguem-se na lista das mais visitadas, procuradas pela ficção, pelo estudo e também pelo acesso à internet. É difícil dar resposta aos pedidos das famílias que se inscrevem para os grupos de leitura, seja na Orlando Ribeiro, seja na Penha de França.

Origens A história encontra-se com a modernidade numa casa nascida na segunda metade do século xix, quando o analfabetismo e a pobreza cultural entram nas preocupações do município de Lisboa. A partir da década de 70 tomam-se as primeiras iniciativas dirigidas a escolas e bibliotecas municipais. Em 1872, dois beneméritos oferecem à câmara uma verba substancial destinada à construção de uma escola municipal que deu origem, em 1876, à Escola Municipal n.o 1 na freguesia da Pena. A primeira notícia sobre bibliotecas municipais data de 1880 e refere-se a um requerimento apresentado pelos professores das escolas oficiais e municipais, no qual solicitavam um subsídio para a criação de uma biblioteca pedagógica de apoio aos estabelecimentos de ensino.
A 5 de Agosto de 1983, pela uma e meia da tarde, inaugurava-se a Biblioteca Central no Edifício da Escola Municipal n.o 1, na presença do presidente da Câmara Rosa Araújo, que transformou o antigo passeio público na Avenida da Liberdade. Elias Garcia, primeiro vereador do Pelouro da Instrução, convidou o seu amigo, e um dos fundadores do Partido Republicano, Feio Terenas, formado em Letras, para as funções de bibliotecário, apesar de nessa altura já ter sido substituído na vereação por Teófilo Ferreira. A coordenação estendia-se a outras duas pequenas bibliotecas da vizinhança que mais tarde desapareceram.

O equipamento, que a partir de 1938 passou a ser designado por Biblioteca de São Lázaro, oferecia horário diurno e nocturno, uma inovação à época, considerando as limitações impostas pela iluminação, hoje assegurada por um imponente lustre. Mais procurada por estudantes de manhã, dada a proximidade da Faculdade de Ciências Médicas, era frequentada nas horas mais tardias por um operariado pujante.

Quando Feio Terenas assume o cargo de deputado cede o seu lugar a Luz de Almeida, comandante supremo da carbonária portuguesa, “que passava o dia aqui sossegadinho, concentrado, e à noite andava a arregimentar carbonários. Quantos terão vindo aqui...”, imagina Jorge Trigo a partir das descrições deixadas por Rocha Martins. De Terenas recorda-se o papel na instrução pública, já que esta biblioteca começou por ser escolar, a mais antiga da cidade, que em 1992 beneficiou de obras de restauro.

Jornal i.

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