segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Morte lenta de uma cidade triste.



Livraria Portugal. As portas fecham-se aos 70
Por Diana Garrido, publicado em 6 Fev 2012


Foi fundada há 70 anos em Lisboa por três sócios e era das poucas livrarias com um boletim literário mensal que corria mundo, com todas as novidades livreiras. No último dia do mês vai fechar as portas para sempre


Assim como os acidentes nas estradas provocam a curiosidade mórbida de quem passa, também o fim de um negócio de muitos anos atrai gente. Não por curiosidade mórbida mas por solidariedade e indignação pela injustiça da crise. Na livraria Portugal, no Chiado, em Lisboa, os clientes entram e saem à procura de títulos difíceis de encontrar nas livrarias modernas, a pensar mais no consumo rápido que não permite armazenar livros com mais de três anos. Velhos, militares, estudantes, clientes habituais para dois dedos de conversa.
Joaquim Carneiro, livreiro, desabafa a brincar: “Se soubesse que ia ser assim, tínhamos anunciado o fecho mais cedo”, referindo-se ao facto de na última semana ter tido mais receitas do que no mês anterior inteiro.
No dia 29, às 19h00, a Portugal fecha as portas de vez. Já a partir de amanhã, entra em liquidação total. Fundada há 70 anos por três sócios, Pedro Andrade, Raul Dias e Henrique Pinto, estava, desde os anos 70, entregue a dez outros sócios, os empregados mais antigos da livraria e chefes de sector.
“A decisão de fechar não foi repentina. Já tínhamos problemas há vários anos, com poucas vendas e pouco público. Os sócios ainda tentaram o meio livreiro, aqueles que poderiam ter interesse nesta casa, mas ninguém quis”, conta Joaquim, que trabalha na Portugal há 48 anos. “Vim menino e moço, passei aqui a adolescência, a juventude. Nunca tive outra vida senão esta”, confessa.
Aos 63 anos espera-o a reforma e as recordações de tantos anos no meio dos livros.
No piso de cima, Maria Germana Ribeiro, de 62 anos, limpa o pó aos livros que irão ser devolvidos às editoras, antes da liquidação total. De bata vestida e pano do pó em riste vai encaixotando títulos, uma tarefa ingrata para quem ali trabalha há 35 anos: “Estamos tristes. Foi uma vida de convívio com colegas, patrões, clientes. Era uma camaradagem muito grande. No outro dia entrou aqui um doutor que disse que quando isto fechasse ia pôr a rua de luto durante um ano. Achei-lhe graça”, diz.
A rua não ficará de luto, mas perderá um centro de cultura: “Era uma fonte de referência e a baixa vai ficar mais pobre. Este era um centro de encontros, onde vinha gente da nossa cultura”, diz Joaquim Carneiro.
A livraria Portugal é generalista e o que a distingue das outras é o facto de não se livrar das edições antigas no que toca à literatura portuguesa só porque saíram novas com capas mais bonitas ou porque o autor já partiu para outra. Isso e o boletim bibliográfico que até aos anos 70 era um luxo de poucas livrarias: “O nosso boletim corria mundo. Tínhamos 11 faculdades americanas que através do boletim ficavam a saber o que saía cá. E nós escolhíamos as novidades mensais para lhes enviar, segundo parâmetros estabelecidos por eles. Davam-nos essa liberdade.”
As causas Crise à parte a verdade é que é cada vez mais difícil para as pequenas livrarias competirem com as grandes superfícies e empresas. “Agora vendem--se livros a um euro. Alguma coisa está mal. Há muitas edições, edita-se de mais para o consumo que temos. E vendem--se livros em todo o lado, até nos Correios, nas bombas de gasolina...”, diz Joaquim Carneiro evitando usar a expressão “concorrência desleal”.
“Investimos bastante neste Natal e não vendemos. As pessoas procuram os centros comerciais”, continua Joaquim. Os últimos anos têm sido possíveis graças “aos clientes amigos que continuam a procurar-nos”.
tira teimas Ao sairmos da livraria Portugal, depois de feitas as despedidas, decidimos ir à Fnac à procura de alguns livros que Joaquim Carneiro destacou. Mãos nos bolsos, escada rolante abaixo e os olhos postos nos cartazes das campanhas de troca que tanta polémica levantaram na internet. Perguntamos a uma das funcionárias o que era feito do célebre “Troque os Maias pela Meyer” e ela indica-nos “deve estar ali no balão”. Não estava. Sobrou apenas “Troque Horas por Milénio”, numa referência à obra de Michael Cunningham e Stieg Larsson. Mas não foi por isso que ali fomos. E antes de nos sentirmos influenciados pelo conforto da loja, superior ao da livraria Portugal, há que admiti-lo, e de nos deixarmos perder entre tantas capas novas e coloridas, pedimos os livros (a lista está na coluna aqui ao lado).
Título a título, editora a editora, nenhum foi encontrado. “Antecedentes Criminais”, de Amadeu Baptista? “O Prisioneiro da Torre Velha”, de Fernando Campos? “Aparição”, de Vergílio Ferreira em capa dura de 1980? “Eu e os Outros”, de António Mendes Moreira? A funcionária limitava-se a abanar a cabeça, já aflita, com tanta resposta negativa, repetindo um “com esse nome não me aparece aqui nada”. Mas isso já nós sabíamos.

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