João Catatau. O best-seller do código da estrada que ensinou meio mundo a conduzir
Por Maria Ramos Silva,
Meia dúzia de títulos chegaram para vender milhões de livros ao longo de 30 anos de “A Carta”
Certos apelidos sobrevivem à via rápida do esquecimento, mesmo que respondam do outro lado da linha em figurino bem diferente do de há três décadas. Os 30 graus brasileiros que escarnecem do frio português pedem calções e chinelos no pé. As quatro rodas não são chamadas para Cumbuco, paraíso do kytesurf, a meia hora de distância de Fortaleza, onde em 2007 investiu num condomínio turístico e por lá ficou a gozar a reforma.
“Enquanto os outros eram Júlio Reis e Alexandre Campos, ou Alves Costa, eu era o Catatau. Tenho um nome invulgar, não é?” É mesmo. Não há volta a dar. João Catatau, o mais popular compilador da teoria das leis da estrada, ainda hoje é lembrado por muito bom aprendiz. “Guia Prático do Bom Condutor”, “Teoria do Código”, “Testes de Código”, “Testes de Mecânica”, “Novo Manual de Mecânica”. Poucos mais títulos foram precisos para vender milhões de manuais ao longo de três dezenas de anos no mundo da condução, onde se estreou a aprovar e reprovar alunos. “Naquela altura, os exames eram feitos por militares e estudantes universitários acima do terceiro ano. Estava no quarto quando um amigo me falou disso e inscrevi-me para fazer exames de condução.”
O então tarefeiro ao serviço da DGV ganhava 30 escudos por exame. O curso de Agronomia, terminado em 72, perdeu caminho para as novas funções, ao contrário do antigo colega Pedro Canas Mendes que certo dia, a caminho de Setúbal, incentivou a estreia de Catatau nos livros, decidindo por sua vez seguir em frente com a medicina. “Era uma confusão, logo a seguir ao 25 de Abril, com a reforma agrária e decidi continuar com os exames.” Começou a rolar a bola de neve. Cada vez mais livros e também material didáctico para as escolas de condução, que conhecia de fio a pavio, óptima alavanca para o início de actividade.
Em 74 criava a empresa A Carta, com a sua história sedeada em Campo de Ourique. Ao mesmo tempo que realizava exames nas áreas de Lisboa, Setúbal e Santarém, mal chegava ao escritório, o assinante do “Diário da República” conferia as alterações no regulamento da estrada. Bastava estar actualizado, simplifica, para fazer os livros. “Não é nada difícil. Como tinha sido examinador, sabia as perguntas que se faziam e onde se insistia mais. Primeiro fiz testes de resposta sim ou não, como eram feitos nessa altura. Depois comecei a fazer outros livros. A tiragem deve ter chegado aos 30 milhões ou mais.”
Até meados de 90 assistiu de camarote ao boom das escolas de condução. A afluência era tal que as listas de espera atingiam um ano. Homens, mulheres, idosos, emigrantes. Os livros saíam como pães quentes. Muitos seguiam pelo correio. Para a Madeira, por exemplo, viajavam cerca de 100 exemplares por dia a partir do Continente. A partir dos anos 80, a empresa começou a ter vendedores que percorriam o país em carrinhas. “Esses vendedores foram conhecendo os filhos dos donos das escolas de condução, que estão hoje à frente das casas. Quem está na berra a vender publicações são ex-empregados nossos.”
Enquanto coligia regras em livro, João foi acumulando habilitações no sector. Tirou carta de ligeiros, pesados, autocarros, tractores, motociclos. “Não podia deixar que alguém me perguntasse se tinha carta e eu ter de dizer que não. Tinha de dar o exemplo.” Está claro. Imagine-se o fiasco de um examinador sem carta. Pelo lugar ao volante dos carochas usados na instrução, também requisitados em dia de prova de fogo, passaram vários nomes. Por evidente destreza ou complacência do examinador, a maioria despachava o assunto à primeira. “Passava mais gente.” Parte da minoria enrascada ficou na memória. Não é para menos.
Corriam os tempos em que um dístico amarelo na traseira do veículo denunciava os condutores com menos de um ano de carta. O pobre do examinando ter-se--á enganado na aula. Tarde de mais. João nunca averiguou conhecimentos de biologia. “Perguntei a um aluno como se assinalava isso e ele respondeu que era com um testículo amarelo na parte traseira do veículo.” Um lapso linguístico ainda se tolerava, mas nem o mais santo dos observadores deixaria passar em branco um casamento nefasto entre teoria e prática.
O anafado agente de uma funerária bem precisava de garantir o “sim” no final dos testes, então realizados no interior do carro, antes da fase da condução, marcada para a Praça do Campo Pequeno. O cangalheiro, que já falhara em demasia na prova oral, enterrou-se a dobrar quando tentou pôr o carro a trabalhar mantendo os pés no chão, alheios por completo da função da embraiagem. “Ia-me rebentando com a caixa de velocidades. Claro que chumbou.” Nem uma nota por debaixo da mesa o salvaria da forca, mas quem sabe se, se o nome do digníssimo educando soasse mais alto, o desfecho não teria sido outro.
Antes de o embaixador da URSS em Portugal Kalinine se aconchegar no banco do carro de Catatau para mostrar o que valia ao volante, já uma legião em peso advertia João da relevância da figura. “Veio o estado-maior todo para me indicar que estava ali o Kalinine. Como quem diz: ‘Não o podes chumbar.’” Desafio superado. Como superado foi o teste ao maestro José Calvário, que no dia seguinte rumava à Eurovisão da Canção.
Foi colega dos também examinadores José Tébar Rodrigues, pai de Maria Elisa, e de Cabaço Martins, que chegou a ser director de viação; e recorda a época em que os exames transitaram para as imediações do Estádio da Luz, com um circuito de provas. Modi operandi desactualizados, tal qual o conteúdo dos seus compêndios. O formato digital das pens acumula informação que dá baile a qualquer monte de folhas. Um manual não chega para compilar as alterações ao longo dos anos. Dos limites de velocidade ao aparecimento de novos sinais de trânsito, sem esquecer os requisitos para obter licença e as características do público-alvo. “Quando comecei havia escolas de condução que davam a quarta classe, e depois então as pessoas tiravam a carta.”
Em 2004, as edições A Carta fechavam portas de vez, mas já antes abandonara os testes práticos. Em 2006 seguiu para o Brasil, onde continua a dar descanso aos 66 anos. “Tínhamos de ter vínculo com o Estado para continuarmos a ser examinadores e nunca quis seguir essa via. Segundo ouço, as escolas de condução estão numa crise terrível, mas na altura era um negócio da China.”
(jornal i).
“Enquanto os outros eram Júlio Reis e Alexandre Campos, ou Alves Costa, eu era o Catatau. Tenho um nome invulgar, não é?” É mesmo. Não há volta a dar. João Catatau, o mais popular compilador da teoria das leis da estrada, ainda hoje é lembrado por muito bom aprendiz. “Guia Prático do Bom Condutor”, “Teoria do Código”, “Testes de Código”, “Testes de Mecânica”, “Novo Manual de Mecânica”. Poucos mais títulos foram precisos para vender milhões de manuais ao longo de três dezenas de anos no mundo da condução, onde se estreou a aprovar e reprovar alunos. “Naquela altura, os exames eram feitos por militares e estudantes universitários acima do terceiro ano. Estava no quarto quando um amigo me falou disso e inscrevi-me para fazer exames de condução.”
O então tarefeiro ao serviço da DGV ganhava 30 escudos por exame. O curso de Agronomia, terminado em 72, perdeu caminho para as novas funções, ao contrário do antigo colega Pedro Canas Mendes que certo dia, a caminho de Setúbal, incentivou a estreia de Catatau nos livros, decidindo por sua vez seguir em frente com a medicina. “Era uma confusão, logo a seguir ao 25 de Abril, com a reforma agrária e decidi continuar com os exames.” Começou a rolar a bola de neve. Cada vez mais livros e também material didáctico para as escolas de condução, que conhecia de fio a pavio, óptima alavanca para o início de actividade.
Em 74 criava a empresa A Carta, com a sua história sedeada em Campo de Ourique. Ao mesmo tempo que realizava exames nas áreas de Lisboa, Setúbal e Santarém, mal chegava ao escritório, o assinante do “Diário da República” conferia as alterações no regulamento da estrada. Bastava estar actualizado, simplifica, para fazer os livros. “Não é nada difícil. Como tinha sido examinador, sabia as perguntas que se faziam e onde se insistia mais. Primeiro fiz testes de resposta sim ou não, como eram feitos nessa altura. Depois comecei a fazer outros livros. A tiragem deve ter chegado aos 30 milhões ou mais.”
Até meados de 90 assistiu de camarote ao boom das escolas de condução. A afluência era tal que as listas de espera atingiam um ano. Homens, mulheres, idosos, emigrantes. Os livros saíam como pães quentes. Muitos seguiam pelo correio. Para a Madeira, por exemplo, viajavam cerca de 100 exemplares por dia a partir do Continente. A partir dos anos 80, a empresa começou a ter vendedores que percorriam o país em carrinhas. “Esses vendedores foram conhecendo os filhos dos donos das escolas de condução, que estão hoje à frente das casas. Quem está na berra a vender publicações são ex-empregados nossos.”
Enquanto coligia regras em livro, João foi acumulando habilitações no sector. Tirou carta de ligeiros, pesados, autocarros, tractores, motociclos. “Não podia deixar que alguém me perguntasse se tinha carta e eu ter de dizer que não. Tinha de dar o exemplo.” Está claro. Imagine-se o fiasco de um examinador sem carta. Pelo lugar ao volante dos carochas usados na instrução, também requisitados em dia de prova de fogo, passaram vários nomes. Por evidente destreza ou complacência do examinador, a maioria despachava o assunto à primeira. “Passava mais gente.” Parte da minoria enrascada ficou na memória. Não é para menos.
Corriam os tempos em que um dístico amarelo na traseira do veículo denunciava os condutores com menos de um ano de carta. O pobre do examinando ter-se--á enganado na aula. Tarde de mais. João nunca averiguou conhecimentos de biologia. “Perguntei a um aluno como se assinalava isso e ele respondeu que era com um testículo amarelo na parte traseira do veículo.” Um lapso linguístico ainda se tolerava, mas nem o mais santo dos observadores deixaria passar em branco um casamento nefasto entre teoria e prática.
O anafado agente de uma funerária bem precisava de garantir o “sim” no final dos testes, então realizados no interior do carro, antes da fase da condução, marcada para a Praça do Campo Pequeno. O cangalheiro, que já falhara em demasia na prova oral, enterrou-se a dobrar quando tentou pôr o carro a trabalhar mantendo os pés no chão, alheios por completo da função da embraiagem. “Ia-me rebentando com a caixa de velocidades. Claro que chumbou.” Nem uma nota por debaixo da mesa o salvaria da forca, mas quem sabe se, se o nome do digníssimo educando soasse mais alto, o desfecho não teria sido outro.
Antes de o embaixador da URSS em Portugal Kalinine se aconchegar no banco do carro de Catatau para mostrar o que valia ao volante, já uma legião em peso advertia João da relevância da figura. “Veio o estado-maior todo para me indicar que estava ali o Kalinine. Como quem diz: ‘Não o podes chumbar.’” Desafio superado. Como superado foi o teste ao maestro José Calvário, que no dia seguinte rumava à Eurovisão da Canção.
Foi colega dos também examinadores José Tébar Rodrigues, pai de Maria Elisa, e de Cabaço Martins, que chegou a ser director de viação; e recorda a época em que os exames transitaram para as imediações do Estádio da Luz, com um circuito de provas. Modi operandi desactualizados, tal qual o conteúdo dos seus compêndios. O formato digital das pens acumula informação que dá baile a qualquer monte de folhas. Um manual não chega para compilar as alterações ao longo dos anos. Dos limites de velocidade ao aparecimento de novos sinais de trânsito, sem esquecer os requisitos para obter licença e as características do público-alvo. “Quando comecei havia escolas de condução que davam a quarta classe, e depois então as pessoas tiravam a carta.”
Em 2004, as edições A Carta fechavam portas de vez, mas já antes abandonara os testes práticos. Em 2006 seguiu para o Brasil, onde continua a dar descanso aos 66 anos. “Tínhamos de ter vínculo com o Estado para continuarmos a ser examinadores e nunca quis seguir essa via. Segundo ouço, as escolas de condução estão numa crise terrível, mas na altura era um negócio da China.”
(jornal i).
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