sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A arqueolojista.







Velhas são as lojas. A Lisboa que mora atrás de balcões
Por Maria Espírito Santo


Entra nas lojas e cafés como se de sua casa se tratasse e cumprimenta quem está atrás do balcão com à vontade familiar. A “arqueolojista”, Mami Pereira, revela as histórias dos estabelecimentos mais antigos de Lisboa e do Porto através das pessoas. A partilha em imagens e palavras faz-se no site com o mesmo nome

Nesta esquina, o Sr. Tomé de voz sussurrante e olhar tranquilo, mais à frente no largo a tia Lila de boa voz e língua afiada, e ali como quem vai para a praça o Sr. Francisco e o Sr. David numa hábil cumplicidade como quem joga ping pongue com as palavras. Há quem já não consiga ver cafés ou lojas nas ruas de Lisboa, mas sim as figuras que se empoleiram ao balcão. Falamos de Mami Pereira, a “arqueolojista” – assim mesmo, com jota, erros ortográficos à parte. A sua missão é entrar nas lojas mais antigas, desenterrar o passado, registar o presente e dar alguns dedos de conversa pelo meio. Fomos entender a ciência que se faz com boa dose de cavaqueira entre culotes, castanhas e água-pé. Faça o favor de nos acompanhar.
Basta espreitar para dentro da loja para receber uma calorosa recepção. O balcão não impede o beijinho e o abraço. Tomé Repas, funcionário da Tabacaria Mónaco, não se contém ao mostrar os encantos deste corredor e a arqueolojista, acompanha-o – já conhece os cantos à casa. Do azulejo de Bordallo Pinheiro, a uma pequena estátua de um homem com uma função particular: de lume na mão acendia os charutos já cortados em baixo, por um gato assanhado de cauda cortante. A nossa guia confessa que este foi um dos sítios que mais a encantou até agora: “Está muito escondida, entre o Nicola e a Tezenis. Entrei no outro dia e fiquei completamente admirada, é lindo, cheio de curiosidades”.
O site A Arqueolojista arrancou há dois meses com fotografias, de retratos a pormenores, das lojas mais castiças da capital, revelando também as suas histórias. Mami, como faz questão que a tratem, trabalhou (e trabalha) em agendas e guias culturais e foi assim que descobriu as lojas antigas. “Achava um bocado triste ninguém lhes dar o devido valor”, acrescenta. Mas a ideia foi fermentando durante algum tempo. Foi entre o fumo e o cheiro a castanhas que começou a conhecer as gentes e a querer dá-las a conhecer aos outros.

Devagar se vai à loja “Mas o que é que andas a fazer?”, grita uma mulher de timbre forte para um homem de olhar cabisbaixo. “É a tia Lila, é de Braga, uma mulher do norte!”, segreda, enquanto nos aproximamos do carrinho que sopra fumo. A expressão desta senhora baixinha, de cabelo grisalho, muda radicalmente ao ver quem se aproxima. Apesar de esta não ser uma loja, é um local de paragem obrigatório, garante a guia: esta senhora vende castanhas há 68 anos quase sempre no mesmo local. Desde os 12 que vende um pouco de tudo e até tem aventuras de fugas à polícia para contar. “Vendo castanhas e gelados” explica, fazendo uma pausa. “É com’à mulher, quentinha de Inverno e fresquinha de Verão”, dispara com uma expressão atrevida. A conversa é curta e a despedida, quase imediata: “Agora tenho que ir filha!”. Abraço forte e um até já, a confiança que se vai ganhando aos poucos. É preciso “rondar” os espaços, trocar algumas ideias, tudo com o seu tempo até porque a máquina fotográfica em punho intimida muita gente: “Às vezes sou literalmente corrida das lojas”, revela. Mas no site www.arqueolojista.com só vai encontrar os sítios onde o receberão de braços abertos – mesmo que não seja à recomendação de Mami – é ela que o garante.

Culotes e santos Num mundo de algodão e malhas, entre robes fofos e pijamas largos estão o Sr. Fernando e o Sr. David. Os dois homens aprumados à frente da Alberto Ferreira dos Santos Lda vendem roupa interior e sabem combinar gentileza, à vontade e bom humor. “A beleza interior das pessoas conhecem eles bem”, repara a guia antes de cumprimentar estes dois companheiros. Depois de um “olá” e um “bom dia” e alguns pedidos de clientes pelo meio, começam a jorrar histórias de vida, como se já anos tivessem passado. De sorriso de orelha a orelha, o Sr. David entra no armazém para regressar com uma caixa em mãos. “As avós e bisavós é que usavam isto, é o fio dental”, graceja enquanto pega numa espécie de calções de algodão, ou melhor, a culote. “As pessoas ficavam mais confortáveis e, na agricultura, como as senhoras se baixavam muito andavam com ela, não fosse um malandreco aparecer por trás”, termina, acompanhando com gestos e gerando a risada geral. Mas a história mais engraçada guarda-a Mami. Foram precisamente estes dois senhores que, um final de tarde, fecharam a loja para relembrar coisas passadas na companhia de castanhas quentes e água pé.
“Deixei de tirar fotos a outras coisas desde que comecei A Arqueolojista”, revela. “Parece que só pego na máquina quando entro numa loja.” Não é de admirar, a próxima paragem, a Havaneza, no Martim Moniz, delicia o olhar. A loja, que um dia já se dedicou à venda de tabaco, hoje preserva a decoração desses tempos apesar de ter mudado de negócio. Santos e santinhos preenchem a montra, de todos os tamanhos e cores, do clássico Santo António à Nossa Senhora florescente. No ambiente sagrado, lá aparece um galo de Barcelos. Ao balcão está já há 26 anos o Sr. Carlos que atende os mais variados pedidos. Qual conselheiro espiritual ajuda a escolher santos e desfazer indecisões entre livros de orações e terços, apesar de ser um homem do mar.
O passeio termina e Mami despede-se. Confessa que gostou do papel de guia e que pretende que o site se torne em algo mais. Depois de deixar o suspense no ar, despede-se. “Vou ver mais lojas”, que aqui é o mesmo que dizer vou conhecer esta cidade fora.

(jornal «i»).

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