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A IMPORTÂNCIA DOS CANDEEIROS E DAS CABINAS TELEFÓNICAS
Em cada aldeia de Inglaterra era costume encontrar um objecto que simbolizava a estabilidade da governação e um refúgio para o viajante: a cabina telefónica. A estrutura de ferro fundido, pintada de vermelho imperial, foi concebida em 1924 por Sir Charles Gilbert Scott, o arquitecto da catedral anglicana de Liverpool, o mais audacioso projecto britânico no domínio do gótico. Como tantos outros arquitectos que trabalharam no fim do apogeu do Império Britânico, Scott era ecléctico, capaz de elaborar um projecto de linhas clássicas, góticas ou proto-modernas, de forma a evidenciar uma profusão de pormenores adequados às novas exigências da era industrial. A cabina telefónica concebida por Scott é emblemática: clássica nas suas linhas, inspirada no túmulo construído por Sir John Soane para a mulher, no cemitério de Saint Pancras, não deixa de ser um produto arrojado da era industrial, onde se insinua algo do estilo Bauhaus, indecente e provocador no rasgado das fenestras. Erguendo-se sobre um plinto delicado, com a forma da base de uma coluna clássica, é encimada por um pedimento ligeiro, sob o qual um painel de vidro opalescente, iluminado por detrás, forma uma espécie de cornija ostentando a palavra «telefone» em sóbrios caracteres clássicos. A porta, dividida em três partes por pinázios verticais, ostenta um puxador de latão fixado na estrutura de ferro fundido; por cima da cornija, gravada ou perfurada, uma pequena coroa simboliza a identidade nacional e assume-se como uma promessa de segurança e de estabilidade institucionais. A inserção destas formas na paisagem urbana e rural da Inglaterra foi tão bem sucedida, que era frequente a sua representação nos cartões de Natal, ora erguendo-se no meio de um mar de neve, ora em contraponto a uma espiral gótica, ora na vizinhança de uma pequena cottage de recorte triangular, protegida por uma cancela de grades. Como elemento de arquitectura urbana é um paradigma: permanente e digna, é a imagem acabada da ordem pública e legítima. Com a privatização da rede telefónica o Reino Unido deu um grande salto em direcção ao futuro. O primeiro sinal desta evolução foi o desaparecimento da tão familiar estrutura de Scott, substituída por uma mistura bárbara de alumínio e vidro inquebrável, do género que é comum nas ruas de Nova Iorque. A nova «cabina» não oferece protecção contra os elementos naturais nem contra a barafunda sonora das ruas da cidade. Não dá nem abrigo nem privacidade ao ocupante; é desprovida do estilo e de significado arquitectónicos e transmite uma sensação de impermanência, tão provisória como a actividade a que se destina. Não representa a estabilidade nem a ordem, mas a agitação frenética de uma mutação constante. É uma advertência clara contra a futilidade de procurar escutar vozes ancestrais na confusão ruidosa de uma cidade moderna. Não entramos numa cabina telefónica de Nova Iorque, servimo-nos dela na passagem. Não é o símbolo reconfortante de um lar, com o qual se pode, a qualquer momento, estabelecer um contacto apaziguador. É um lugar onde se grita por socorro em direcção a um espaço vazio, de onde nunca chegará qualquer auxílio.
O contraste que acabo de estabelecer ilustra as profundas mutações sofridas pela nossa percepção do espaço público. A rua é, por excelência, o espaço público onde a cidade imprime a sua marca aos que nela vivem e que representa, se disso for capaz, a sociedade que é a razão de ser da sua existência. Nas grandes épocas da civilização, nunca o traçado de uma cidade foi deixado ao acaso. A altura, o alinhamento, as janelas e as entradas das casas estavam sujeitas a normas, e os objectos colocados na via pública para o uso dos passantes davam expressão a um sentimento comum e legítimo de vida pública.
Os estilos clássicos infundem uma noção de consistência porque são representações de uma ideia de legitimidade. As suas formas e pormenores foram gradualmente adquirindo um significado permanente, no qual se podia confiar para transmitir uma mensagem que dispensava as palavras, numa linguagem serena e genial que respondia às necessidades do espaço urbano. Um portão clássico não precisa de nenhum letreiro a indicar ENTRADA; os degraus clássicos não precisam de nenhum suplemento de palavras para orientar a atenção e o movimento dos que neles se deslocam. O uso e o significado de um edifício eram patenteados por um conjunto de indícios visuais que exprimiam e sancionavam o entendimento público dos objectivos da vivência colectiva.
É por isso que as estações de caminho-de-ferro construídas em estilo clássico, como McKim, Mead e White’s Station, todas destruídas nos anos 60, exibiam tão poucas indicações escritas: pela altura e proporção dos arcos, pelas diversas decorações, pelo diálogo das molduras e ornatos, sabia-se exactamente onde comprar o bilhete, deixar a bagagem ou apanhar o comboio. Veja-se agora um aeroporto moderno, onde uma babel de palavras garatujadas em todos os estilos gráficos parece gritar a partir de todas as paredes, exactamente porque a arquitectura é muda na sua ausência uniforme de estilo.
Esta balbúrdia de palavras também irrompeu pelas nossas cidades. As fachadas das lojas não nos dizem nada sobre o que lá está dentro; as entradas são obscuras, sem qualquer ornamento, a ponto de poderem passar desapercebidas se não tivessem um letreiro a indicar ENTRADA. As paragens de autocarro são apenas postes nos quais é preciso escrever PARAGEM para percebermos a sua utilidade. Os próprios sinais desceram ao mesmo nível transitório das funções que anunciam. Os caracteres já não apresentam um ar pesado e digno, antes transmitem uma ideia de movimento; parecem deslocar-se rapidamente, deixando para trás uma esteira de centelhas ou um sobreado dinâmico desenhado em tons garridos para atrair a atenção. Mesmo as igrejas e as capelas, cujas funções os portais góticos proclamam sem ambiguidades, exibem quadros informativos, não vá acontecer alguém desconhecer para que servem. Que contraste entre esta agitação ruidosa e as velhas placas esmaltadas com os nomes das ruas de Nova Iorque, que nos segredavam, ainda que num sussurro pleno de autoridade, que aquela rua estava ali desde o princípio dos tempos.
O desenho dos equipamentos públicos restringiu-se á sua funcionalidade. Na minha aldeia, a paragem do autocarro assemelha-se a uma cottage construída com pedra da região e desenhada para se integrar no espaço que a cerca. A moderna paragem de autocarro é uma janela múltipla de molduras metálicas, sem outro significado que não seja a sua função que, aliás, desempenha mal, exactamente porque a sua única função. Tal como uma casa deixa de ser um lar quando é concebida como uma «máquina para viver», também o abrigo da paragem de autocarro deixa de ser um abrigo quando é concebido como uma «máquina para estar de pé». Desde que Jane Jacobs desencadeou o seu ataque devastador contra as teorias modernistas de planificação urbana em The Death and Life of Great American Cities, tornou-se evidente que a «desagregação de funções» da cidade moderna é a causa primária da alienação social. O urbanismo modernista, que coloca as lojas num local, as ruas noutro, os jardins ainda noutro e ainda os escritórios noutro, obriga os cidadãos a deslocações constantes, privando-os da cidade enquanto casa colectiva. O mesmo se passa com os bairros residenciais e os equipamentos da via pública: os que são concebidos com um propósito exclusivamente funcional são capazes de preencher a função, ou melhor, são incapazes de o fazer numa perspectiva humana.
Vejamos o «marco do correio» inglês, uma estrutura maravilhosa que, graças ao Império, se pode encontrar em qualquer parte do mundo, ainda que nem sempre pintada daquele vermelho imperial que tanta vida lhe dava. Tal como a antiquada cabina telefónica, o «marco do correio» inglês transmite um ar de estabilidade. A base e a cornija, a estrutura sólida em ferro fundido e a boca aberta, realçada pelos ornatos que a envolvem, são, sob a perspectiva de um arquitecto funcionalista, inteiramente supérfluos, um desperdício de trabalho e de material, que não pode ser justificado pelo uso. No entanto, é precisamente isso que confere segurança ao serviço postal nacional: ao colocarmos as nossas cartas dentro daquela caixa, através da abertura estreita, gozamos da sensação confortável de as saber em segurança e já a caminho do destinatário. Esta confiança deriva de expectativas fundadas no funcionamento do serviço postal, e a insígnia real gravada no receptível exprime um espírito genuíno de serviço público e de disciplina.
Sempre assim foi. O nosso serviço postal tem-se mostrado sempre digno de confiança e capaz de entregar uma carta no prazo de um dia. O contraste com o U.S. Postal Service é evidente e essa evidência transparece de imediato no desenho funcional e desprovido de estilo do receptáculo postal americano. Durante a minha primeira estadia na América recusava-me a depositar as minhas cartas numa daquelas latas desconjuntadas, por que não acreditava que alguém se viesse ocupar do seu envio. Tinham aspecto de sucata e pareciam destinadas á sucata, tal como tudo o que pudessem conter. São um exemplo claro de como a funcionalidade explícita se institui como inimiga da própria função e é bem possível que o receptáculo postal americano tenha exercido alguma influência no descrédito generalizado do serviço federal.
Estes casos servem para demonstrar como a solidez e a autoconfiança são tão importantes como o estilo, como se pode avaliar por um outro exemplo americano, a boca de incêndio. Neste caso particular torna-se difícil impor uma ordem disciplinada na estrutura, tal como é complicado o recurso a ornamentos. No entanto, a boca de incêndio tornou-se um dos poucos símbolos urbanos americanos que transmitem uma mensagem de confiança. A estrutura sólida em ferro fundido, os tamões amarelos de latão polido, a postura erecta e como que enraizada num espaço inviolável, representam a autoridade vigilante da cidade, estável, inamovível, preparada para qualquer emergência, como uma garantia solene e visível de que a urbe se propõe sobreviver a todas as vicissitudes.
No que diz respeito à iluminação pública, as exigências quanto ao estilo tornam-se mais prementes e mais fáceis de satisfazer. O velho candeeiro a gás era um descendente da ordem arquitectónica, com uma base, um fuste, um capitel e uma profusão de ornatos nos diversos pontos de junção. Era concebido para se erguer na rua, erecto como um soldado, elegantemente ataviado, impassível e seguro. O candeeiro moderno, de lâmpada de vapor de sódio, tem uma aparência frágil e abandonada. Debruça-se sobre a rua, pendurado por um arco incompleto, cuja curvatura desguarnecida não se harmoniza nem com verticalidade das fachadas nem com a horizontalidade do pavimento. Quando o vento a fustiga, a estrutura abana com uma restolhada metálica, acentuando-lhe a natureza precária e passageira, como se a qualquer momento pudesse cair e esmagar-se no solo. A sua existência reduz-se à funcionalidade, substituindo os antigos candeeiros a gás, disciplinadamente alinhados, como um bando de guerrilheiros treinados poderia ocupar o lugar de um esquadrão de polícias uniformizadas em rígida formatura. No ardor de um combate, o uniforme de um polícia é muito menos funcional do que as calças de ganga, as armas e a máscara de esqui de um guerrilheiro urbano. Só que a função do uniforme da polícia vai mais longe, transcendendo a própria funcionalidade. Transmite segurança, confere dignidade e legitimidade; assegura-nos que o poder da polícia não é arbitrário, que está investido de uma autoridade imbuída do mesmo espírito de cidadania que nos produz á obediência.
A iluminação pública obedece a um padrão de segurança, é um sinal de que a cidade tem olhos. Mesmo assim, as pessoas parecem menos interessadas na quantidade de luz do que na qualidade urbana da sua fonte. O olhar duro e frio do candeeiro moderno surge mais como uma ameaça do que como uma segurança. A luz sem sombras que irradia parece expulsar da rua qualquer significado social, priva-nos da nossa intimidade e convida ao perigo que deveria prevenir; essa luz sem alma esbate as fronteiras entre o certo e o errado, entre o Bem e o Mal, entre a lei e o crime. A iluminação pública moderna é totalitária, orweliana; onde se derrama, tudo se torna incolor, impessoal. Quando aos cidadãos é permitido o direito de escolha da sua paisagem urbana, é frequente pedirem a manutenção dos candeeiros a gás, ou a sua substituição por candeeiros eléctricos que reproduzem as antigas formas tradicionais e cuja luz suave envolva a rua num doce claro-escuro familiar e acolhedor.
Ainda um último exemplo: os sanitários públicos. Na rua onde vivi durante a minha infância havia uma espécie de capela, de ferro pintado de verde, moldado em forma de arcos de catedral decorados com motivos florais e reunidos por chapas de metal perfuradas. A palavra HOMENS, desenhada em letras góticas sob uma moldura da estrutura. E ninguém objectava á sua presença, de tal modo este santuário conferia dignidade ao casario vulgar. Em termos comparativos, o pissoir parisiense, revestido da mesma cor suave, era um triunfo da arquitectura citadina. No lugar destas soluções felizes para um eterno problema da humanidade, temos agora cabinas amovíveis de cimento descorado, com portas corrediças de metal que lhe dão um ar de naves estratosférica. Não estão fixas ao chão, nem obedecem a nenhuma orientação face aos edifícios que a circundam; estão unicamente ali colocadas, como latas para lixo, como monumentos ao esterco que somos.
No entanto, nem tido está perdido. Existem hoje empresas especializadas em equipamentos urbanos que nos oferecem uma réplica aceitável dessas construções, desde os candeeiros a gás aos bancos de ferro fundido, que outrora enriqueciam as nossas ruas com o seu significado cívico. O antigo candeeiro em forma de báculo episcopal e o banco de jardim da Grande Exposição Mundial proliferam outra vez em Nova Iorque e os arquitectos começam a levar a sério a questão do mobiliário dos espaços públicos. A urbanização da Quinlan Terry em Richmond Riverside, perto de Londres, atribui tanta atenção às ruas, escadas e zonas para peões como às fachadas, e é digna de nota pelos seus bancos e receptáculos para lixo, tão imbuídos de perenidade como os próprios edifícios. Este revivalismo da arquitectura cívica não é apanágio exclusivo de classicistas confessos como Terry: basta olhar para os cadeeiros e para as balaustradas cujo ritmo harmonioso empresta uma dignidade festiva á esplanada de Battery Park, em Nova Iorque.
Seja como for, é necessário reflectir sobre o que levou os estilos modernos a falhar na sua relação com o espaço público. Por que razão é que esta sabedoria ancestral, tão simples, tão bem entendida pelos arquitectos e urbanistas do passado, desde a velha Atenas até às vésperas da Primeira Guerra Mundial, subitamente rejeitada? Haverá quem acuse o mau gosto popular; outros poderão culpar o mercado. Mas não passam de explicações superficiais. Nos assuntos públicos não existe uma lógica de mercado genuína, uma vez que as escolhas não são feitas pelos cidadãos, mas em sua representação. E quando a voz do público se consegue fazer ouvir é para pedir o respeito pelos traçados tradicionais e para mostrar a sua insatisfação com os substitutos modernos.
Somos seres autoconscientes, que nos damos conta da nossa natureza impermanente; sabemos, no nosso íntimo, que a vida fora da sociedade é pobre, solitária, desagradável, brutal e curta. A cidade é o símbolo do nosso desafio, o monumento às aspirações humanas, o compromisso assumido de que a vida perdurará em moldes semelhantes ao presente. A cidade depende de um processo complexo de autocontenção e de consensos; a sua função só é possível porque os milhões que a habitam assumem compromissos tácitos com os seus vizinhos, renunciando à força em prol de concessões mútuas, numa multiplicidade de pequenas transacções, enquanto se vão acotovelando nas ruas e nos mercados, nas filas para os autocarros, nas cadeiras dos cinemas e dos teatros, ou simplesmente cruzando-se no parque.
Este feito extraordinário só é possível pela existência de uma autoridade geral benevolente, uma espécie de supervisor geral cuja presença se faz sentir, sem contudo se intrometer oficialmente. Esta instância superior é a própria cidade, na realidade concreta das suas ruas e monumentos, que se erguer, autoritária e imperturbável, acima da desordem humana. É através da cidade que nos relacionamos com o tempo, não como se faz no campo, pela mudança das estações, mas de uma forma diferente, por um diálogo constante de permanência e de mudança, onde os símbolos duradouros da ordem acolhem as nossas acções mais fugazes e a memória do passado se sobrepõe ao mar do esquecimento. É este o significado profundo dos monumentos, das igrejas e dos estilos clássicos. É este o sentido que se deve procurar na arquitectura urbana, uma sensação de pertença à cidade, e não o ar de qualquer coisa desgarrada que ali se deixou cair.
Quando as pessoas se referem ao abastardamento dos equipamentos urbanos é isto que elas têm em mente. A sinalização de cores berrantes, os objectos funcionais, os bancos amovíveis, as cabinas telefónicas, os lavabos e os abrigos das paragens de autocarro não se integram no pano de fundo permanente da cidade, mas tão só na superficialidade transitória dos assuntos humanos, o que provoca a confusão das percepções. O espaço do efémero é das pessoas, não é da cidade. Entendemos o carro do vendedor de gelados ou a banca de fruta como propriedades particulares, uma partícula ínfima e destacável na imensidão das transacções humanas. Mas a nossa percepção do equipamento urbano não é a mesma, porque não pertence a ninguém em especial. Por razões que decorrem da sua natureza não se integra no mundo da propriedade privada e do mercado. E, contudo, quando deixa de nos transmitir a ideia de permanência, quando não ostenta a marca de serviço público patente nos estilos clássicos, também não se integra no pano de fundo da cidade. Flutua numa espécie de terra de ninguém, entre o privado e o público, desconhecido e abandonado, sem significado e sem autoridade, tão à deriva na cidade como qualquer detrito. Não é, pois, de espantar, que as caixas de correio modernas sejam tão frequentemente aviltadas por garatujas sórdidas e que as cabinas telefónicas dos nossos dias sejam objecto de tanto vandalismo, transformadas de lixo implícito em lixo explícito, como uma espécie de castigo por não terem cumprido a missão de pertencer.
Na minha opinião, quando tivermos interiorizado a natureza profunda dos equipamentos da via pública como símbolos da ordem permanente instituída ao longo dos tempos, perceberemos como é importante a sua forma externa. Há muitas razões para o aumento da criminalidade e da desordem nas nossas cidades e a arquitectura está longe de ser apontada como uma das causas primárias. No entanto, é preciso não esquecer que os padrões de conduta e de cortesia exigidos pela vivência dentro dos grandes aglomerados urbanos não são fáceis de adquirir. Ao ritmo acelerado imposto pela cidade, só é possível viver em paz se houver consciência de que apenas um refinamento das boas maneiras poderá estabelecer rapidamente uma panóplia de códigos e de convenções que responda positivamente ao bem colectivo. O facto de haver roubos, violações e crimes nas cidades modernas não constitui uma surpresa em si mesmo; o contrário é que seria uma surpresa. Apenas uma autocontenção vigilante e permanente poderá permitir a funcionalidade do sistema. E o sistema tem de funcionar, visto que a cidade é o coração da sociedade moderna, o lugar onde se tomam as decisões e de onde se tomam as decisões e de onde emana todo o poder.
Os antigos equipamentos urbanos engendravam e conferiam legitimidade à atitude cívica daqueles que os partilhavam. As pessoas imitavam espontaneamente a postura digna dos objectos que as cercavam absorvendo assim, da própria cidade, uma perspectiva de ordem pública e de bem comum. Tudo isto pode ser visto nos velhos filmes sobre a vida em Manhattan, ou mesmo no Harlem, onde as formas ordenadas da cidade eram o contraponto das vestes das pessoas e onde a concepção genial do equipamento urbano reflectia a decência do comportamento na via pública. Reflectindo sobre a nossa experiência histórica, não posso deixar de sentir que a desordem crescente da cidade moderna tem origem, pelo menos em parte, no facto de ter perdido o seu ar de permanência. Aos olhos do cidadão, a cidade tornou-se tão provisória e descartável como o lixo que se acumula pelas suas ruas e alamedas.
A IMPORTÂNCIA DOS CANDEEIROS E DAS CABINAS TELEFÓNICAS
Em cada aldeia de Inglaterra era costume encontrar um objecto que simbolizava a estabilidade da governação e um refúgio para o viajante: a cabina telefónica. A estrutura de ferro fundido, pintada de vermelho imperial, foi concebida em 1924 por Sir Charles Gilbert Scott, o arquitecto da catedral anglicana de Liverpool, o mais audacioso projecto britânico no domínio do gótico. Como tantos outros arquitectos que trabalharam no fim do apogeu do Império Britânico, Scott era ecléctico, capaz de elaborar um projecto de linhas clássicas, góticas ou proto-modernas, de forma a evidenciar uma profusão de pormenores adequados às novas exigências da era industrial. A cabina telefónica concebida por Scott é emblemática: clássica nas suas linhas, inspirada no túmulo construído por Sir John Soane para a mulher, no cemitério de Saint Pancras, não deixa de ser um produto arrojado da era industrial, onde se insinua algo do estilo Bauhaus, indecente e provocador no rasgado das fenestras. Erguendo-se sobre um plinto delicado, com a forma da base de uma coluna clássica, é encimada por um pedimento ligeiro, sob o qual um painel de vidro opalescente, iluminado por detrás, forma uma espécie de cornija ostentando a palavra «telefone» em sóbrios caracteres clássicos. A porta, dividida em três partes por pinázios verticais, ostenta um puxador de latão fixado na estrutura de ferro fundido; por cima da cornija, gravada ou perfurada, uma pequena coroa simboliza a identidade nacional e assume-se como uma promessa de segurança e de estabilidade institucionais. A inserção destas formas na paisagem urbana e rural da Inglaterra foi tão bem sucedida, que era frequente a sua representação nos cartões de Natal, ora erguendo-se no meio de um mar de neve, ora em contraponto a uma espiral gótica, ora na vizinhança de uma pequena cottage de recorte triangular, protegida por uma cancela de grades. Como elemento de arquitectura urbana é um paradigma: permanente e digna, é a imagem acabada da ordem pública e legítima. Com a privatização da rede telefónica o Reino Unido deu um grande salto em direcção ao futuro. O primeiro sinal desta evolução foi o desaparecimento da tão familiar estrutura de Scott, substituída por uma mistura bárbara de alumínio e vidro inquebrável, do género que é comum nas ruas de Nova Iorque. A nova «cabina» não oferece protecção contra os elementos naturais nem contra a barafunda sonora das ruas da cidade. Não dá nem abrigo nem privacidade ao ocupante; é desprovida do estilo e de significado arquitectónicos e transmite uma sensação de impermanência, tão provisória como a actividade a que se destina. Não representa a estabilidade nem a ordem, mas a agitação frenética de uma mutação constante. É uma advertência clara contra a futilidade de procurar escutar vozes ancestrais na confusão ruidosa de uma cidade moderna. Não entramos numa cabina telefónica de Nova Iorque, servimo-nos dela na passagem. Não é o símbolo reconfortante de um lar, com o qual se pode, a qualquer momento, estabelecer um contacto apaziguador. É um lugar onde se grita por socorro em direcção a um espaço vazio, de onde nunca chegará qualquer auxílio.
O contraste que acabo de estabelecer ilustra as profundas mutações sofridas pela nossa percepção do espaço público. A rua é, por excelência, o espaço público onde a cidade imprime a sua marca aos que nela vivem e que representa, se disso for capaz, a sociedade que é a razão de ser da sua existência. Nas grandes épocas da civilização, nunca o traçado de uma cidade foi deixado ao acaso. A altura, o alinhamento, as janelas e as entradas das casas estavam sujeitas a normas, e os objectos colocados na via pública para o uso dos passantes davam expressão a um sentimento comum e legítimo de vida pública.
Os estilos clássicos infundem uma noção de consistência porque são representações de uma ideia de legitimidade. As suas formas e pormenores foram gradualmente adquirindo um significado permanente, no qual se podia confiar para transmitir uma mensagem que dispensava as palavras, numa linguagem serena e genial que respondia às necessidades do espaço urbano. Um portão clássico não precisa de nenhum letreiro a indicar ENTRADA; os degraus clássicos não precisam de nenhum suplemento de palavras para orientar a atenção e o movimento dos que neles se deslocam. O uso e o significado de um edifício eram patenteados por um conjunto de indícios visuais que exprimiam e sancionavam o entendimento público dos objectivos da vivência colectiva.
É por isso que as estações de caminho-de-ferro construídas em estilo clássico, como McKim, Mead e White’s Station, todas destruídas nos anos 60, exibiam tão poucas indicações escritas: pela altura e proporção dos arcos, pelas diversas decorações, pelo diálogo das molduras e ornatos, sabia-se exactamente onde comprar o bilhete, deixar a bagagem ou apanhar o comboio. Veja-se agora um aeroporto moderno, onde uma babel de palavras garatujadas em todos os estilos gráficos parece gritar a partir de todas as paredes, exactamente porque a arquitectura é muda na sua ausência uniforme de estilo.
Esta balbúrdia de palavras também irrompeu pelas nossas cidades. As fachadas das lojas não nos dizem nada sobre o que lá está dentro; as entradas são obscuras, sem qualquer ornamento, a ponto de poderem passar desapercebidas se não tivessem um letreiro a indicar ENTRADA. As paragens de autocarro são apenas postes nos quais é preciso escrever PARAGEM para percebermos a sua utilidade. Os próprios sinais desceram ao mesmo nível transitório das funções que anunciam. Os caracteres já não apresentam um ar pesado e digno, antes transmitem uma ideia de movimento; parecem deslocar-se rapidamente, deixando para trás uma esteira de centelhas ou um sobreado dinâmico desenhado em tons garridos para atrair a atenção. Mesmo as igrejas e as capelas, cujas funções os portais góticos proclamam sem ambiguidades, exibem quadros informativos, não vá acontecer alguém desconhecer para que servem. Que contraste entre esta agitação ruidosa e as velhas placas esmaltadas com os nomes das ruas de Nova Iorque, que nos segredavam, ainda que num sussurro pleno de autoridade, que aquela rua estava ali desde o princípio dos tempos.
O desenho dos equipamentos públicos restringiu-se á sua funcionalidade. Na minha aldeia, a paragem do autocarro assemelha-se a uma cottage construída com pedra da região e desenhada para se integrar no espaço que a cerca. A moderna paragem de autocarro é uma janela múltipla de molduras metálicas, sem outro significado que não seja a sua função que, aliás, desempenha mal, exactamente porque a sua única função. Tal como uma casa deixa de ser um lar quando é concebida como uma «máquina para viver», também o abrigo da paragem de autocarro deixa de ser um abrigo quando é concebido como uma «máquina para estar de pé». Desde que Jane Jacobs desencadeou o seu ataque devastador contra as teorias modernistas de planificação urbana em The Death and Life of Great American Cities, tornou-se evidente que a «desagregação de funções» da cidade moderna é a causa primária da alienação social. O urbanismo modernista, que coloca as lojas num local, as ruas noutro, os jardins ainda noutro e ainda os escritórios noutro, obriga os cidadãos a deslocações constantes, privando-os da cidade enquanto casa colectiva. O mesmo se passa com os bairros residenciais e os equipamentos da via pública: os que são concebidos com um propósito exclusivamente funcional são capazes de preencher a função, ou melhor, são incapazes de o fazer numa perspectiva humana.
Vejamos o «marco do correio» inglês, uma estrutura maravilhosa que, graças ao Império, se pode encontrar em qualquer parte do mundo, ainda que nem sempre pintada daquele vermelho imperial que tanta vida lhe dava. Tal como a antiquada cabina telefónica, o «marco do correio» inglês transmite um ar de estabilidade. A base e a cornija, a estrutura sólida em ferro fundido e a boca aberta, realçada pelos ornatos que a envolvem, são, sob a perspectiva de um arquitecto funcionalista, inteiramente supérfluos, um desperdício de trabalho e de material, que não pode ser justificado pelo uso. No entanto, é precisamente isso que confere segurança ao serviço postal nacional: ao colocarmos as nossas cartas dentro daquela caixa, através da abertura estreita, gozamos da sensação confortável de as saber em segurança e já a caminho do destinatário. Esta confiança deriva de expectativas fundadas no funcionamento do serviço postal, e a insígnia real gravada no receptível exprime um espírito genuíno de serviço público e de disciplina.
Sempre assim foi. O nosso serviço postal tem-se mostrado sempre digno de confiança e capaz de entregar uma carta no prazo de um dia. O contraste com o U.S. Postal Service é evidente e essa evidência transparece de imediato no desenho funcional e desprovido de estilo do receptáculo postal americano. Durante a minha primeira estadia na América recusava-me a depositar as minhas cartas numa daquelas latas desconjuntadas, por que não acreditava que alguém se viesse ocupar do seu envio. Tinham aspecto de sucata e pareciam destinadas á sucata, tal como tudo o que pudessem conter. São um exemplo claro de como a funcionalidade explícita se institui como inimiga da própria função e é bem possível que o receptáculo postal americano tenha exercido alguma influência no descrédito generalizado do serviço federal.
Estes casos servem para demonstrar como a solidez e a autoconfiança são tão importantes como o estilo, como se pode avaliar por um outro exemplo americano, a boca de incêndio. Neste caso particular torna-se difícil impor uma ordem disciplinada na estrutura, tal como é complicado o recurso a ornamentos. No entanto, a boca de incêndio tornou-se um dos poucos símbolos urbanos americanos que transmitem uma mensagem de confiança. A estrutura sólida em ferro fundido, os tamões amarelos de latão polido, a postura erecta e como que enraizada num espaço inviolável, representam a autoridade vigilante da cidade, estável, inamovível, preparada para qualquer emergência, como uma garantia solene e visível de que a urbe se propõe sobreviver a todas as vicissitudes.
No que diz respeito à iluminação pública, as exigências quanto ao estilo tornam-se mais prementes e mais fáceis de satisfazer. O velho candeeiro a gás era um descendente da ordem arquitectónica, com uma base, um fuste, um capitel e uma profusão de ornatos nos diversos pontos de junção. Era concebido para se erguer na rua, erecto como um soldado, elegantemente ataviado, impassível e seguro. O candeeiro moderno, de lâmpada de vapor de sódio, tem uma aparência frágil e abandonada. Debruça-se sobre a rua, pendurado por um arco incompleto, cuja curvatura desguarnecida não se harmoniza nem com verticalidade das fachadas nem com a horizontalidade do pavimento. Quando o vento a fustiga, a estrutura abana com uma restolhada metálica, acentuando-lhe a natureza precária e passageira, como se a qualquer momento pudesse cair e esmagar-se no solo. A sua existência reduz-se à funcionalidade, substituindo os antigos candeeiros a gás, disciplinadamente alinhados, como um bando de guerrilheiros treinados poderia ocupar o lugar de um esquadrão de polícias uniformizadas em rígida formatura. No ardor de um combate, o uniforme de um polícia é muito menos funcional do que as calças de ganga, as armas e a máscara de esqui de um guerrilheiro urbano. Só que a função do uniforme da polícia vai mais longe, transcendendo a própria funcionalidade. Transmite segurança, confere dignidade e legitimidade; assegura-nos que o poder da polícia não é arbitrário, que está investido de uma autoridade imbuída do mesmo espírito de cidadania que nos produz á obediência.
A iluminação pública obedece a um padrão de segurança, é um sinal de que a cidade tem olhos. Mesmo assim, as pessoas parecem menos interessadas na quantidade de luz do que na qualidade urbana da sua fonte. O olhar duro e frio do candeeiro moderno surge mais como uma ameaça do que como uma segurança. A luz sem sombras que irradia parece expulsar da rua qualquer significado social, priva-nos da nossa intimidade e convida ao perigo que deveria prevenir; essa luz sem alma esbate as fronteiras entre o certo e o errado, entre o Bem e o Mal, entre a lei e o crime. A iluminação pública moderna é totalitária, orweliana; onde se derrama, tudo se torna incolor, impessoal. Quando aos cidadãos é permitido o direito de escolha da sua paisagem urbana, é frequente pedirem a manutenção dos candeeiros a gás, ou a sua substituição por candeeiros eléctricos que reproduzem as antigas formas tradicionais e cuja luz suave envolva a rua num doce claro-escuro familiar e acolhedor.
Ainda um último exemplo: os sanitários públicos. Na rua onde vivi durante a minha infância havia uma espécie de capela, de ferro pintado de verde, moldado em forma de arcos de catedral decorados com motivos florais e reunidos por chapas de metal perfuradas. A palavra HOMENS, desenhada em letras góticas sob uma moldura da estrutura. E ninguém objectava á sua presença, de tal modo este santuário conferia dignidade ao casario vulgar. Em termos comparativos, o pissoir parisiense, revestido da mesma cor suave, era um triunfo da arquitectura citadina. No lugar destas soluções felizes para um eterno problema da humanidade, temos agora cabinas amovíveis de cimento descorado, com portas corrediças de metal que lhe dão um ar de naves estratosférica. Não estão fixas ao chão, nem obedecem a nenhuma orientação face aos edifícios que a circundam; estão unicamente ali colocadas, como latas para lixo, como monumentos ao esterco que somos.
No entanto, nem tido está perdido. Existem hoje empresas especializadas em equipamentos urbanos que nos oferecem uma réplica aceitável dessas construções, desde os candeeiros a gás aos bancos de ferro fundido, que outrora enriqueciam as nossas ruas com o seu significado cívico. O antigo candeeiro em forma de báculo episcopal e o banco de jardim da Grande Exposição Mundial proliferam outra vez em Nova Iorque e os arquitectos começam a levar a sério a questão do mobiliário dos espaços públicos. A urbanização da Quinlan Terry em Richmond Riverside, perto de Londres, atribui tanta atenção às ruas, escadas e zonas para peões como às fachadas, e é digna de nota pelos seus bancos e receptáculos para lixo, tão imbuídos de perenidade como os próprios edifícios. Este revivalismo da arquitectura cívica não é apanágio exclusivo de classicistas confessos como Terry: basta olhar para os cadeeiros e para as balaustradas cujo ritmo harmonioso empresta uma dignidade festiva á esplanada de Battery Park, em Nova Iorque.
Seja como for, é necessário reflectir sobre o que levou os estilos modernos a falhar na sua relação com o espaço público. Por que razão é que esta sabedoria ancestral, tão simples, tão bem entendida pelos arquitectos e urbanistas do passado, desde a velha Atenas até às vésperas da Primeira Guerra Mundial, subitamente rejeitada? Haverá quem acuse o mau gosto popular; outros poderão culpar o mercado. Mas não passam de explicações superficiais. Nos assuntos públicos não existe uma lógica de mercado genuína, uma vez que as escolhas não são feitas pelos cidadãos, mas em sua representação. E quando a voz do público se consegue fazer ouvir é para pedir o respeito pelos traçados tradicionais e para mostrar a sua insatisfação com os substitutos modernos.
Somos seres autoconscientes, que nos damos conta da nossa natureza impermanente; sabemos, no nosso íntimo, que a vida fora da sociedade é pobre, solitária, desagradável, brutal e curta. A cidade é o símbolo do nosso desafio, o monumento às aspirações humanas, o compromisso assumido de que a vida perdurará em moldes semelhantes ao presente. A cidade depende de um processo complexo de autocontenção e de consensos; a sua função só é possível porque os milhões que a habitam assumem compromissos tácitos com os seus vizinhos, renunciando à força em prol de concessões mútuas, numa multiplicidade de pequenas transacções, enquanto se vão acotovelando nas ruas e nos mercados, nas filas para os autocarros, nas cadeiras dos cinemas e dos teatros, ou simplesmente cruzando-se no parque.
Este feito extraordinário só é possível pela existência de uma autoridade geral benevolente, uma espécie de supervisor geral cuja presença se faz sentir, sem contudo se intrometer oficialmente. Esta instância superior é a própria cidade, na realidade concreta das suas ruas e monumentos, que se erguer, autoritária e imperturbável, acima da desordem humana. É através da cidade que nos relacionamos com o tempo, não como se faz no campo, pela mudança das estações, mas de uma forma diferente, por um diálogo constante de permanência e de mudança, onde os símbolos duradouros da ordem acolhem as nossas acções mais fugazes e a memória do passado se sobrepõe ao mar do esquecimento. É este o significado profundo dos monumentos, das igrejas e dos estilos clássicos. É este o sentido que se deve procurar na arquitectura urbana, uma sensação de pertença à cidade, e não o ar de qualquer coisa desgarrada que ali se deixou cair.
Quando as pessoas se referem ao abastardamento dos equipamentos urbanos é isto que elas têm em mente. A sinalização de cores berrantes, os objectos funcionais, os bancos amovíveis, as cabinas telefónicas, os lavabos e os abrigos das paragens de autocarro não se integram no pano de fundo permanente da cidade, mas tão só na superficialidade transitória dos assuntos humanos, o que provoca a confusão das percepções. O espaço do efémero é das pessoas, não é da cidade. Entendemos o carro do vendedor de gelados ou a banca de fruta como propriedades particulares, uma partícula ínfima e destacável na imensidão das transacções humanas. Mas a nossa percepção do equipamento urbano não é a mesma, porque não pertence a ninguém em especial. Por razões que decorrem da sua natureza não se integra no mundo da propriedade privada e do mercado. E, contudo, quando deixa de nos transmitir a ideia de permanência, quando não ostenta a marca de serviço público patente nos estilos clássicos, também não se integra no pano de fundo da cidade. Flutua numa espécie de terra de ninguém, entre o privado e o público, desconhecido e abandonado, sem significado e sem autoridade, tão à deriva na cidade como qualquer detrito. Não é, pois, de espantar, que as caixas de correio modernas sejam tão frequentemente aviltadas por garatujas sórdidas e que as cabinas telefónicas dos nossos dias sejam objecto de tanto vandalismo, transformadas de lixo implícito em lixo explícito, como uma espécie de castigo por não terem cumprido a missão de pertencer.
Na minha opinião, quando tivermos interiorizado a natureza profunda dos equipamentos da via pública como símbolos da ordem permanente instituída ao longo dos tempos, perceberemos como é importante a sua forma externa. Há muitas razões para o aumento da criminalidade e da desordem nas nossas cidades e a arquitectura está longe de ser apontada como uma das causas primárias. No entanto, é preciso não esquecer que os padrões de conduta e de cortesia exigidos pela vivência dentro dos grandes aglomerados urbanos não são fáceis de adquirir. Ao ritmo acelerado imposto pela cidade, só é possível viver em paz se houver consciência de que apenas um refinamento das boas maneiras poderá estabelecer rapidamente uma panóplia de códigos e de convenções que responda positivamente ao bem colectivo. O facto de haver roubos, violações e crimes nas cidades modernas não constitui uma surpresa em si mesmo; o contrário é que seria uma surpresa. Apenas uma autocontenção vigilante e permanente poderá permitir a funcionalidade do sistema. E o sistema tem de funcionar, visto que a cidade é o coração da sociedade moderna, o lugar onde se tomam as decisões e de onde se tomam as decisões e de onde emana todo o poder.
Os antigos equipamentos urbanos engendravam e conferiam legitimidade à atitude cívica daqueles que os partilhavam. As pessoas imitavam espontaneamente a postura digna dos objectos que as cercavam absorvendo assim, da própria cidade, uma perspectiva de ordem pública e de bem comum. Tudo isto pode ser visto nos velhos filmes sobre a vida em Manhattan, ou mesmo no Harlem, onde as formas ordenadas da cidade eram o contraponto das vestes das pessoas e onde a concepção genial do equipamento urbano reflectia a decência do comportamento na via pública. Reflectindo sobre a nossa experiência histórica, não posso deixar de sentir que a desordem crescente da cidade moderna tem origem, pelo menos em parte, no facto de ter perdido o seu ar de permanência. Aos olhos do cidadão, a cidade tornou-se tão provisória e descartável como o lixo que se acumula pelas suas ruas e alamedas.
Roger Scruton - Verão de 1996
(publicado in «Paradigma Urbano»).
(publicado in «Paradigma Urbano»).
1 comentário:
Esse livro está "baratucho" naquelas feiras do livro das estações do Metropolitano de Lisboa, e é muito, mesmo muito interessante... apesar de ser uma compilação de artigos referentes, na maioria, a problemas com que as cidades norte-americanas se confrontavam nos anos 90, muitas das problemáticas abordadas não andam longe dos problemas que actualmente se vêem por Lisboa...
Ah, e este artigo também foi um dos meus preferidos da compilação :)
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