segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A pedalar para salvar a comida do lixo e matar a fome envergonhada.



O criador do projecto Re-Food, o norte-americano Hunter Halder (Foto: Filipe Arruda)

No "centro de operações" chamam-lhe Maria Clandestina. É como um código. O seu nome verdadeiro está escrito no post-it amarelo colado ao saco cheio de embalagens com comida. São quase 21h. Hunter Halder pega no saco e vai a pé até ao prédio onde ela mora. Já lá está o alguidar, com o saco de embalagens vazias, do dia anterior. A troca dos sacos é feita discretamente, num local escondido, em poucos segundos. A mulher, com os seus 80 anos, vai buscar a "encomenda" mais tarde. O ritual, que parece uma operação secreta, repete-se todas as noites.

A cena até poderia passar-se num bairro pobre de Lisboa, mas não. Maria Clandestina mora na freguesia de Nossa Senhora de Fátima, nas Avenidas Novas, uma das zonas nobres da capital. O salário que recebe como porteira não chega para pôr o jantar na mesa todos os dias, mas a vergonha da pobreza é quase maior do que a fome. "Disse-me que precisava de ajuda, mas não queria que os vizinhos soubessem. Preferia morrer", conta Hunter.

"Aqui há muita fome envergonhada", lamenta o consultor norte-americano de 60 anos, a viver há 20 em Lisboa. Inspirado pela campanha do piloto António Costa Pereira, que há um ano lançou uma petição contra o desperdício alimentar, Hunter pôs mãos à obra e montou, com a ajuda do filho Christopher Halder, uma "operação de resgate de comida", assente em duas evidências: todos os restaurantes têm sobras, comida boa que normalmente vai para o lixo, e há cada vez mais pessoas carenciadas, a quem o desemprego bateu à porta ou cujo salário não chega para comer. "Só é preciso que alguém faça a ponte entre as duas realidades."

Desde Março que Hunter está a construir essa ponte, através da Re-Food 4 Good, a associação que criou para pôr no terreno o projecto Re-Food (diminutivo para rescuing good food, ou seja, salvar comida boa). Hoje, o projecto é "alimentado" por cerca de 50 voluntários. Todos trabalham por uma causa: combater o desperdício alimentar e matar a "fome urbana". Estão a fazê-lo, para já, numa zona piloto com sete quarteirões na freguesia de Nossa Senhora de Fátima, onde identificaram perto de 70 pessoas carenciadas. Em seis meses distribuíram - de bicicleta sempre que possível -mais de seis mil refeições doadas por 31 restaurantes, cafés, cafetarias e pastelarias daquela área.

O objectivo é alargar o projecto a outras zonas da cidade e transformar Lisboa na "primeira cidade sem desperdício alimentar". Os 21 mil euros que receberam do Prémio Voluntariado Jovem Montepio (eram 25 mil, mas distribuíram 1000 por cada um dos outros quatro finalistas), atribuído pela Fundação Montepio e a Lusitania - Companhia de Seguros, vão ajudar no plano de expansão.

Pesadelo da sopa entornada

José Viegas, de 54 anos, é quase sempre o primeiro voluntário a chegar à antiga loja que serve de sede ao Re-Food - antes ficava na cantina da Igreja de Nossa Senhora de Fátima e agora está temporariamente instalada na Av. Conde de Valbom. A porta abre pouco antes de começar a primeira recolha de comida nos estabelecimentos, das 19h às 20h, e só fecha lá para a meia-noite, depois da distribuição e de outra ronda pelos restaurantes, das 22h às 23h. José fica até ao fim, enérgico como se estivesse a começar o dia. Mas o trabalho dele começou cedo, ao almoço, no quiosque ao lado da igreja. "Faço comida para os sem-abrigo. Costumam ser uns 30, mas hoje apareceram 50. Só aqui na freguesia, há 100."

No pequeno espaço da sede as prateleiras estão repletas de sacos e embalagens de plástico, vazias ou cheias de sopa, bem tapadas. "Sopa entornada é o nosso pior pesadelo", diz Hunter, lembrando as vezes que entornou sopa na bicicleta que usa para fazer a recolha nos restaurantes mais afastados. A bicicleta é mesmo a imagem de marca do Re-Food. Tem um cesto forrado a plástico amarelo instalado à frente e outro atrás. No início, foi a pedalar que Hunter promoveu a ideia. "As pessoas ficavam curiosas ao ver um homem com um chapéu de palha na cabeça, a conduzir uma bicicleta com dois cestos cheios de sacos", conta, a rir. Alguns curiosos tornaram-se voluntários, como o senhor Lemos, de 74 anos, que empresta o carro para a distribuição nos bairros mais distantes.A recolha começa a pé. Hunter vai até ao primeiro restaurante. Entra pela porta dos fundos que vai dar à cozinha e logo uma das funcionárias, Maria de Jesus, pega nas caixas que já pôs de lado. Três embalagens de sopa, quatro com arroz, peixe e carne, salada. "Para nós é um alívio. Deitávamos muita coisa fora, porque a crise toca a todos e já tivemos mais freguesia", lamenta. O desabafo vai-se repetindo durante a recolha, à qual se junta Catarina, outra voluntária, de 16 anos. São precisas quatro mãos, há comida para levar em todos os estabelecimentos.

A tarefa seguinte é encher os sacos, verdadeiros cabazes alimentares adaptados a cada família, com sopa, prato principal, fruta e pão ou bolos. José já nem olha para a tabela onde estão escritas as preferências de cada "cliente". Sabe-as de cor. "A Ana Paula não gosta de bacalhau, fica com borbulhas na cara. Outra é diabética. Outra não quer fritos."

O carro do senhor Lemos, que arranca com a mala cheia por volta das 20h15, vai até ao Bairro de Santos. No caminho, o rádio debita o jogo entre o Manchester United e o Benfica, clube pelo qual torce Catarina. Não preferia estar a ver o jogo? "É mais importante levar comida a estas pessoas que não têm nada. Ainda não veio aqui, pois não? Já vai perceber." O carro pára ao pé da Escola Primária n.º 44, onde espera meia dúzia de mulheres com crianças pela mão. Aproximam-se, fazem fila, algumas queixam-se do jantar da véspera. "Vocês não têm culpa, mas é só para avisar", diz uma delas - cabelo apanhado, bem vestida, cigarro na mão - falando da sopa que chegou azeda. Fábio, o filho de Ana Paula, de sete anos, já jantou, mas ela não. Depois de uns minutos de conversa, vai para casa com o saco cheio e um "até amanhã".

São 21h. No Bairro do Rego está um casal de idosos que ainda não jantou. Os voluntários sobem ao primeiro andar do prédio sem luz nas escadas - os interruptores foram arrancados das paredes sujas. A mulher abre a porta e Hunter deixa o saco da comida na cozinha. A visita é rápida, ainda há mais uma paragem a fazer.

À espera está um casal com três crianças que antes bebiam água com açúcar ao jantar.

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