sexta-feira, 6 de maio de 2011

Figuras de Lisboa: Belle Dominique.







Belle Dominique "O homem português é passivo, pouco corajoso"
por Maria Ramos Silva, Publicado em 06 de Maio de 2011


Angola, 1973. Um grupo de homens de barba rija baixa a guarda para assistir a um espectáculo de travesti. O embrião da transgressora Belle Dominique, que este mês celebra 35 anos, estava lançado. Belle, a pioneira que correu o país e a televisão, não tem amor de mãe tatuado no braço. Foi Domingos Machado quem se submeteu há dois anos à provação das agulhas. "Em vez de ganhar juízo com a idade, piorei."

Quantos anos já têm estas fotos com uma jovem Belle Dominique?
À vontade uns 32 anos. Esta aqui [aponta]foi numa casa discoteca, o Scarlati Club. Um número da Juliette Greco, com lenços, em que fazia um striptease.

Onde arranjava os adereços na altura?
Tínhamos que puxar pela cabecinha. Se queríamos algo mais extravagante pedíamos boleia ou a alguém que fosse a Madrid porque lá havia. Nesta outra é o meu primeiro travesti na tropa, em Angola, onde comecei. Foi na brincadeira da festa de natal em 1973, no agrupamento de transmissões em Luanda. Foi uma paródia às misses Portugal com três camaradas.

Como é que os camaradas da tropa receberam a transformação?
Olhe, nem me pergunte. Éramos mesmo doidos. Acho que comparando o pré e pós 25 de Abril, embora se diga que hoje há mais liberdade, em certos aspectos duvido. Havia uma tolerância implícita que permitia cometer algumas transgressões. Hoje, mentalmente, temos a censura mais apertada. Desde que não se incomodasse muito, tudo era possível fazer. Achava-se estranho mas havia um misto de curiosidade.

Depois da tropa dá-lhe vida a sério.
Foi por acaso. Depois de regressar da comissão militar fui ao bar Memorial e encontrei um camarada com quem tinha feito tropa no Porto que já fazia espectáculos de travesti e convidou-me por brincadeira para alinhar. Na altura vinha com horizontes muito abertos de Angola. Sempre vivera num ambiente castrador numa Lisboa muito cinzenta. No regresso vinha com o fogo todo.

Mas as suas raízes estão no Alentejo.
Sou de Moura. Tínhamos emigrado para Lisboa em 66. O meu pai era farmacêutico e a minha irmã mais velha seguiu-lhe as pisadas.

Que achavam dos seus espectáculos?
Depois de ter ido ao Memorial, no início, tive um certo cuidado para não os ferir, até porque sabia que ia ser muito esquisito. Passado uns tempos expliquei as festas que fazia. Felizmente a minha família nunca se imiscuiu muito na vida uns dos outros. Damo-nos todos bem.

Alguma vez o viram ao vivo?
Sim, a partir de uma certa altura chegaram a ir e acharam graça. Estávamos a abrir a caminho e tínhamos brio em fazer espectáculos bem feitos, com poucos recursos mas muita imaginação.

Notou evolução em termos de público?
O apogeu do espectáculo de travesti foi nos anos 80. A partir de certa altura vulgarizou-se. Acho que precisa de um ambiente próprio, intimista, interior. Os mais novos também não tinham o mesmo espírito; tinham mais o gosto de se vestirem de mulher, de se sentirem mulheres, enquanto que nós o fazíamos pelo espectáculo. Hoje está reduzido a ambientes gay, que são muito redutores.

É frequente confundir travestismo com homossexualidade, aliás.
Exactamente. Uma questão é ser homossexual, outra é andar vestido de mulher, como há também na rua, na prostituição. A partir de certa altura para separar o palco da rua, chamava-se espectáculo de transformismo. Eu continuo a dizer espectáculo de travesti.

É fácil separar o Domingos Machado da Belle Dominique?
É. Para além dos espectáculos sempre tive um emprego normal. Quando vim para Lisboa em 66 vim trabalhar para um escritório como paquete, coisa que os miúdos hoje não fariam. E continuei a estudar à noite, em Alcântara. Entre o trabalho e as aulas, ainda conseguia ir aprender francês, italiano, alemão e aulas de ballet. Fiz isso até ir para a tropa. Claro que ainda não havia a Dominique.

De onde vem o nome?
O meu nome em francês era Dominique, como me chamavam muita vez, por ser sonante. Na altura do travesti pensei em usá-lo, mas faltava qualquer coisa. Havia o filme "Belle de Jour" e ficou o Belle Dominique. Foi uma conjugação de sons marcante. Na altura eu era bonita, elegante.

Estamos sempre com um pé nos dois géneros.
Isso é curioso. Como homem falo da Belle como ela. Quando me começo a caracterizar é como que uma osmose. À medida que me vou pintando vou assumindo a personalidade dela e o Domingos desaparece.

Como chega à televisão?
Por conselho de uma amiga, concorri à RTP. Entrei em 81, 82. Comecei na direcção de informação e fui trabalhar com as equipas de reportagem, e ainda fiz um curso para assistente de realização. Estive lá 24 anos até ter a possibilidade de rescindir.

Souberam logo que era a Belle?
No início protegi um bocadinho a imagem. Só quando vi que era a altura certa é que contei, mas os funcionários iam reconhecendo. Só houve um pouco de choque quando fui fazer um programa como Belle para a SIC e era funcionário da RTP como Domingos Machado. Mas a situação era legal, porque as entidades jurídicas eram completamente distintas. Não fui marginalizado até porque não misturava as coisas.

Quando deixa de aparecer sente falta?
Se me perguntar se gostava de voltar a fazer televisão com assiduidade, gostava. Depois do "Minas e Armadilhas" fui para o júri do "Big Show SIC" e achei muita graça. É pena que não haja nenhum canal com coragem para pegar na Belle Dominique, porque tenho um enorme feedback do público.

Abordam-no muito na rua?
Sim, quando ando à civil, como costumo dizer. Sobretudo quando falo, porque tenho uma voz rouca muito característica. Acho que o nome dela ainda está vivo. Sempre tive cuidado em fazer dela uma figura agradável e o público eram sobretudo crianças e adolescentes, depois mulheres e os homens no último lugar, como tinha que ser.

Porque homem que é homem não vê?
Há sempre um preconceito, mas os homens também gostam. Só que o homem português é passivo, pouco corajoso. A mulher é que deu um grande pulo nos últimos anos. É por isso que há tanto divórcio. Têm caminhos divergentes. Deviam juntar-se, já nem digo casarem-se, porque sou contra.

Nunca pensou casar?
Não, não, felizmente. Ter que assinar um papel faz-me confusão. Duas pessoas juntam-se e acabou. A mim assusta-me. O casamento mata o amor. O que não quer dizer que não goste muito de andar apaixonado. E já tenho tanta descendência, três irmãs com filhos e sobrinhos.

E espírito e visual jovens
Ah, e tenho tatuagens e tudo. Aqui neste braço tenho uma tribalista que é um par a dançar. E tenho uma mais atrevida na perna [mostra um diabinho em pouca roupa]

Fê-las há quanto tempo?
Olhe, costuma-se dizer que com a idade em vez de ganhar juízo ficamos pior, e eu fiquei pior. Aos anos que faço espectáculos e já devia ter as orelhas furadas por causa dos brincos, tinha que usar sempre com molas. Furei as orelhas há uns dois anos, e as tatuagens também. Mas as tatuagens doem muito. Ui! Então na da perna, o que eu gemi. O rapaz que a fez já não me podia ouvir. Mas cá está e está bonita.


(ionline).

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