segunda-feira, 16 de maio de 2011

Duque de Ávila: recuperar dos escombros.







Duque de Ávila. Na avenida nova arruma-se o desespero dentro das lojas
por Marta F. Reis.


Lojistas exigem que a Metro de Lisboa pague indemnizações e prejuízos depois de seis anos e meio de obras. Lembram a poeira, a fuga dos clientes e os vários assaltos

O Sol da manhã ilumina a nova Avenida Duque de Ávila e tudo parece perfeito - a calçada arranjada a pedir esplanadas, as árvores a crescer, uma ciclovia. Dentro das lojas, as lágrimas dos comerciantes mostram que as feridas não passam só porque a avenida, como lhes prometeram, ficou mais bonita: foram quase sete anos de obras, onde entram 1825 dias de derrapagem do prazo previsto. Os que acordaram indemnizações deixaram de as receber há três anos. Há casos pendentes em tribunal e muitos prejuízos calculados. Em quatro estabelecimentos visitados pelo i, os montantes somam quase 2 milhões de euros.

O troço entre a Avenida da República e a Avenida Defensores de Chaves regressou à normalidade a 28 de Abril - muito depois do prazo dado na carta enviada pelo Metropolitano de Lisboa aos comerciantes a 20 de Agosto de 2004. A obra "considerada prioritária em termos de operacionalidade da rede" - e que ligaria o Saldanha ao Areeiro e a S. Sebastião - levaria ao corte da circulação rodoviária e previa-se, então, que terminasse no primeiro trimestre de 2006. "Passados sete meses, continuavam a dizer que iam conseguir manter o prazo", lembra Luís Cunha, proprietário da Farmácia Cardeira, que tinha adquirido um ano antes, quando as obras do metro ainda eram um projecto vago. "Isto hoje parece uma dead zone. Foi uma situação ímpar na Europa: não é possível ter uma avenida central de uma capital europeia fechada durante seis anos e meio."

Quando as obras começaram, Luís Cunha, como os outros comerciantes, acreditaram nos prazos e que a obra tinha de ser feita. Depois, à medida que escalavam os prejuízos, alguns foram tentando acordos com a empresa. Alexandre Silveira, sócio da firma Saraiva & Gonzalez, foi um dos primeiros a ter a promessa de compensação da Metro: vendia automóveis, e os carros iam deixar de poder entrar e sair. "O administrador da empresa jurava a pés juntos que ia ser um ano, na pior das hipóteses 18 meses. Insisti numa cláusula de que pagariam mais 10% do acordado se ultrapassem o prazo, que se não tinham dúvidas não se compreendia a hesitação."

Acordou com a Metro de Lisboa o pagamento de uma compensação mensal, que chegou pela última vez em Setembro de 2007, justificada pela empresa com o facto de já haver uma entrada na rua. Mas o trânsito não tinha sido reposto, defende Silveira, com o caso em julgamento para receber os mais de 100 mil euros que a empresa "lhe deve" desde então. E o seu negócio deixou de se enquadrar na avenida. À frente do stand, onde em 1983 pagou o polimento do passeio, há agora metros de calçada e uma árvore que, se continuar a crescer, impossibilita qualquer entrada e saída.

Depois de ter perguntado à câmara se o projecto urbanístico previa que ele "passasse só a vender Smarts" - missiva que nunca teve resposta - há duas semanas instalaram dois pilaretes na zona rebaixada do passeio. "Nas Finanças vão ver que vendemos novos e usados, ligeiros e pesados, máquinas agrícolas e industriais e barcos de recreio. Quem fez o plano não se preocupou em ver quem eram os lojistas." Antecipou-se e em Abril arrendou o espaço a um restaurante. Quando a rua fechou tinha 17 carros que dividiu por casas das redondezas. "Mantive sempre o escritório, os empregados e era ali que recebia os clientes, até porque se fechasse corria uma acção de despejo. Perdi dinheiro, perdi clientela e a empresa está falida", conta o proprietário, entretanto reformado aos 62 anos.



Uma mão à frente e outra atrás Maria Fátima Pires, 64 anos, sente-se outra vez com 27, acabada de chegar de Angola "com uma mão à frente e outra atrás". Em 30 anos, construiu o nome do café São Remo. Nos quase sete anos de obra, teve de fechar a fábrica de bolos, vender património, hipotecar a casa onde vive e despedir nove funcionários. "Fomos burros. Disseram-nos que não nos ia faltar nada, que iam estar atentos. Nunca fomos ressarcidos", conta ao lado da filha, Maria Emília. Quando procuraram a Metro, tiveram de entregar por três vezes os mesmos documentos e não receberam qualquer tipo de compensação ao longo das semanas em que chegaram a fazer menos de 300 euros por dia. "Não queremos enriquecer à custa deles, queremos só aquilo que os meus pais trabalharam para ter."

O único pagamento feito foi por um buraco que abriram até meio da casa e levou ao fecho durante dois meses, em 2005. Os olhos de Fátima humedecem--se, como se se mantivessem as nuvens de poeira que afastavam os clientes e o tapume de três metros de altura à porta. "Ficava a olhar para o pessoal, horas de mãos cruzadas nas costas, à espera que entrasse alguém." Há tempos, o vereador Sá Fernandes visitou o café e disse--lhe: "Dona Fátima, essas lágrimas ainda se vão transformar em alegria." Mas enquanto calculam os prejuízos, a recompensa tarda em chegar. Por baixo, dizem, serão mais de 800 mil euros, entre os danos, os três assaltos, as rachas nas paredes - que Fátima tapou uma a uma, fez esta Páscoa um ano - e as perdas de mais de 60% no negócio. Pela licença da nova esplanada, a primeira na rua, tiveram de pagar 761 euros. "Não nos estão a facilitar nada a vida. Até as cadeiras têm de estar em viés e andar no sentido da sombra dos chapéus. O nosso mal foi termos confiado." Para manter o pessoal, passaram a pagar os salários e subsídios partidos em duas e três vezes. "Queremos ir para tribunal mas não podemos pagar", conta Maria Emília.

Secundino Silva, da pastelaria Gávea, está no mesmo barco. "Graças a Deus as obras acabaram. De que vale a pena falar?" Os clientes habituais nunca deixaram de calcorrear os caminhos esguios entre as obras, onde se repetiram os acidentes, os assaltos e chegou mesmo a haver uma morte, lembram todos. Chovia, o homem na casa dos 50 anos foi de encontro a um tapume e não resistiu ao ferimento. "Engaiolaram-nos aqui durante anos, com uma grade a um metro da porta. As pessoas tinham medo de passar aqui no escuro. De noite era gritos constantemente." As lágrimas de Secundino soltam-se quando lembra a hora de almoço em que uma nuvem de poeira sujou os pratos ao balcão e os clientes saíram. "Deram-nos uma compensação durante 26 meses e parou quando recusámos assinar que a obra estava acabada. Há quem tenha capacidade para os meter em tribunal, nós não temos."

Luís Cunha venceu a primeira acção em tribunal, mas a Metro de Lisboa apresentou recurso na Relação. Em causa está a compensação, em dívida, referente ao segundo trimestre de 2006 - cerca de 16 mil euros, na sequência de um acordo que assinou com a Metro a 20 de Junho de 2005. A farmácia quer reaver um total de 1,6 milhões de euros, entre prestações em dívida e lucros cessantes. Conseguiu adaptar-se à falta de clientes com vendas a casas de repouso, mas a quebra nas vendas ao balcão foi substantiva, garante. Já tentaram reunir três vezes com a Metro e propuseram um acordo no montante de um milhão de euros, mas não tiveram resposta. "Tentam vencer-nos pelo cansaço, despesa com advogados e custas judiciais", diz.

Alexandre Silveira denuncia o mesmo jogo do empata em tribunal - que no seu caso só pode ser à espera que o processo se prolongue para lá da morte, como a história de um colega que há meses recebeu um cheque da seguradora por um acidente de há 20 anos. "Queremos justiça. Houve um asfixiamento total dos comerciantes, houve má-fé em toda a negociação. Irei até a última consequência. Uma empresa pública não pode tratar ninguém desta forma", diz Luís Cunha.

Contactada pelo i, a Metropolitano de Lisboa não esclareceu que acompanhamento manteve junto dos comerciantes, o montante das indemnizações pagas e as condições em que entende poder haver ressarcimento dos prejuízos documentados pelos comerciantes. Não respondeu também a que se deveu a derrapagem no prazo e no orçamento da obra. Segundo dados da PSP fornecidos ao i, embora a polícia não relacione os números com a obra, nas freguesias que a Duque de Ávila atravessa houve mais do dobro das ocorrências - entre furtos simples, por esticão ou em lojas - entre 2004 e 2006 do que nos dois últimos anos, quando terminaram as obras subterrâneas e diminuíram os tapumes.

Na avenida, a maior revolta de todos é, dizem, terem sido enganados. Falam de calvário, pesadelo e barbaridade. Silveira, como esteve na tropa, compara a rua nova a uma guerra. "O metro matou um pelotão, nós somos os sobreviventes."


(jornal «i»).

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