segunda-feira, 25 de abril de 2011

A Voz das Vítimas e «48».







Voz das Vítimas Memórias dos presos políticos em exposição
por Diana Garrido, Publicado em 23 de Abril de 2011 .A antiga cadeia do Aljube reabre para uma exposição com nomes como Mário Soares ou Álvaro Cunhal, entre muitos outros anónimos que sofreram às mãos da PIDE

"O inquiridor terá de ser paciente, usar de doçura, seriedade, imparcialidade, flexibilidade e não ter ideias preconcebidas." Este é um excerto do Manual da Escola Técnica da PIDE no que toca às técnicas de interrogação dos detidos.

"Algemaram-me com as mãos atrás das costas. Mal entrei na sala de interrogatório, entraram quatro torcionários que, sem mais, me espancaram, insultaram, depois... saíram. Foi o começo." Este é o testemunho real de um dos milhares de presos políticos que sofreram às mãos da PIDE. A suposta doçura perdeu-se algures entre as estaladas e torturas aplicadas aos detidos durante dias a fio.

"Aljube - A Voz das Vítimas", é uma exposição que tem como objectivo honrar a memória e o sacrifício de todos os que foram presos e torturados durante o Estado Novo. Para que nunca se esqueça o que se passou durante mais de 30 anos. A exposição está patente na Cadeia do Aljube, em Lisboa, que funcionou como prisão política de 1928 a 1965, data em que fechou as portas. Por lá passaram presos como Mário Soares, Álvaro Cunhal, Miguel Torga, Urbano Tavares Rodrigues, António Borges Coelho, Salgado Zenha, Fernando Rosas ou Vasco Granja.

Conceição Matos, antiga funcionária da PCP, também. Foi uma das mulheres que mais sofreu nas mãos da polícia política. Numa das salas da exposição - que nas paredes tem referências a algumas das técnicas de tortura utilizadas (tortura do sono; tortura da estátua; ameaças à família; espancamentos; choques eléctricos) - a ex resistente dá o seu testemunho, gravado, do que passou. E conta, a preto e branco, como esteve três dias sem dormir, graças à tortura do sono, que foi obrigada a fazer as necessidades no chão, na mesma divisão onde estava presa, e como as fezes eram limpas com a própria roupa, que os guardas lhe iam despindo.

Há fotografias de presos, de funcionários da PIDE, histórias de fugas e espancamentos.

Alfredo Caldeira, da Fundação Mário Soares, uma das instituições que patrocinou a iniciativa (assim como o Instituto de História Contemporânea da Universidade de Lisboa e o movimento cívico Não Apaguem a Memória), também esteve preso no Aljube. Tem 65 anos e, à medida que nos guia pelas escadas em direcção a mais uma parte da exposição, confessa, sem se querer alongar sobre o assunto, que também ele esteve encarcerado num "curro", uma cela de dois metros quadrados onde os presos eram fechados dias a fio. Foram reconstruídos alguns curros, já que os verdadeiros foram destruídos pelo Estado em 1965. Se tiver coragem de entrar num deles, pode ouvir batidas na parede, a única forma de comunicação entre os detidos, obrigados ao isolamento total. Na mesma sala, junto à mesa do guarda, um telefone toca estridente, como antigamente, anunciando o que os presos temiam: um deles iria ser levado para interrogatório, para a sede da PIDE, na rua António Maria Cardoso.

A exposição "Aljube - A Voz das Vítimas" alonga-se por três pisos e tem um pouco de tudo, fotografias, documentos, material histórico e uma sala multimédia onde pode ouvir testemunhos de vários presos, incluindo Álvaro Cunhal e Mário Soares. No último piso, há uma parede forrada a fichas de detidos "homens, mulheres, de várias ideologias políticas e idades, porque a memória é plural", explica Alfredo.

Ao longe ouve-se a voz de Maria Flor Pedroso e de Rui Pêgo, a enumerar nomes e idades de cerca de cem pessoas que não sobreviveram à perseguição da PIDE. Contas feitas muito por alto, diz Alfredo, desde 1928 que mais de duas pessoas eram detidas por dia, em média. A ditadura só acabou em 1974. Faça as contas.

"Aljube - A Voz das Vítimas" estará na antiga cadeia do Aljube até dia 5 de Outubro. A entrada é livre.

“48”. As fotografias também podem dar filmes

Estreou esta semana o documentário de Susana de Sousa Dias, com as imagens de cadastro e testemunhos de presos políticos

lll São fotografias paradas, no ecrã Fotografias de cadastro a preto e branco, de frente e perfil. Uma sorri – era a fotografia de saída da prisão, não de entrada. Os outros oscilam entre o desprezo, o medo e a tristeza profunda. São todos presos políticos. Foram todos encarcerados pela PIDE e muitos deles torturados e mal tratados. Outros, poucos, escaparam ilesos.


“48” é o documentário de Susana de Sousa Dias que estreou esta semana nos cinemas. Foi premiado no Festival Internacional do Documentário e Cinema de Animação de Leipzig, na Alemanha e no festival Cinéma du Réel, em França. O título refere-se ao número de anos de ditadura em Portugal.
Por trás das fotografias paradas, que Susana filmou nos arquivos da PIDE, estão as vozes dos presos, entrevistados pela realizadora, entre 2000 e 2009. Diz que, “apesar de ser mais difícil para quem fala e conta do que para quem ouve”, foram entrevistas complicadas: “Deparei-me, até, com questões éticas: devo fazer esta pergunta? Devo parar? Até que ponto tenho o direito de perguntar isto? E houve histórias que não me saíram da cabeça.”


O facto de não haver qualquer imagem actual dos protagonistas do documentário tem duas explicações: “As fotografias de cadastro são o único momento que nos permite penetrar no universo da prisão e era isso que me interessava. Por outro lado, se eu os mostrasse agora, seria o presente a contar o passado e as fotografias apenas uma ilustração dessa altura e não era isso que queria.”


Este documentário nasceu de outro filme, o “Natureza Morta”, sobre duas enfermeiras do Estado Novo que tinham sido presas. “Quando se começa a puxar um fio descobrem-se muitas coisas que não foram tratadas. Entrei no arquivo da PIDE, por causa do outro filme e não consegui parar”, conta. A primeira vez que entrou no arquivo, em 2000, filmou as fotografias que queria, sem qualquer problema. Em 2003, quando quis voltar, foi diferente: “Disseram-me que tinha de ter autorização por escrito de todos os fotografados e as certidões de óbito dos que já tinham morrido. Foi muito difícil. E tive vergonha. Já viu, pedir aos familiares certidões de óbito?” A razão, explica, prende-se com questões legais: “Aplicaram o direito à imagem dos presos políticos. Desvalorizaram as fotografias enquanto documentos históricos.”


A realizadora está a trabalhar noutro projecto “Luz Obscura”, também fruto das suas visitas aos arquivos da polícia política do Estado Novo: “Encontrei a única fotografia de cadastro de uma criança, que foi presa com a mãe. Descobri esse menino, que hoje tem 50 e tal anos, e a partir daí fiz um documentário sobre toda a rede familiar por trás dos presos.”

(ionline).

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