quarta-feira, 23 de março de 2011

Douradores 222.





Douradores 222. O centro comercial mais antigo de Lisboa
por Clara Silva,

Fica no 2.º andar de um prédio na Baixa e tem lojas que funcionam desde os anos 60. Desde uma empresa que manda dinheiro para São Tomé a um reparador de máquinas registadoras
A loja de conserto de relógios de Filipe Cipriano
martim ramos/kameraphoto 1/1 + fotogalería .À entrada do segundo andar do número 222 da Rua dos Douradores, em Lisboa, há sete campainhas por onde escolher. "Quim", "Filipe", "Leonel - São Tomé", "Rolimaque" são alguns dos nomes escritos à mão ao lado dos botões. No corredor, várias setas de madeira inclinadas para a esquerda e para a direita indicam o caminho para as 14 portas do andar num prédio da Baixa lisboeta. Sousa Martins, de 83 anos, o inquilino que subaluga as várias salas - com rendas que começam nos 50 e acabam nos 200 euros - não gosta de chamar-lhe centro comercial, mas é o melhor nome para definir este segundo andar que parece ter parado no tempo: o centro comercial mais antigo de Lisboa.

O REPARADOR DE MÁQUINAS "Trabalho na venda e reparação de máquinas registadoras, de calcular e de escrever, mas temos aqui gravadores, um relojoeiro, um ourives, costureiras e já tivemos alfaiates, sapateiros... Muita coisa", enumera Sousa Martins ao balcão da sua loja numa ponta do corredor. Há 40 anos montou ali a sua empresa de reparação de máquinas, a Rolimaque, numa sala onde já funcionara uma fábrica de luvas. "Quando tinha 17 anos carregava máquinas de escrever às costas. Um dia arranjei um relógio antigo da administração, que ainda ninguém tinha conseguido reparar, e perguntaram-me se queria ir para as oficinas. Foi como perguntar a um cego se queria ver." Sousa Martins já tinha fundado uma empresa na Rua Augusta, mas foi neste andar da Rua dos Douradores que conseguiu os melhores trabalhos. "Arranjei seis máquinas de escrever para o Museu da Presidência da República, daquelas enormes, do tamanho dos braços abertos, como tenho aqui uma", conta. "E também chegámos a vender computadores que montávamos do zero. Vendemo-los à GNR e à Direcção Geral da Administração Pública."

O OURIVES Numa pequena sala na outra ponta do corredor, Carlos Fortes, de 69 anos, também se gaba dos seus trabalhos. "Tirei dois diamantes grandes que eram do gibão do D. Dinis para fazer uns pendentes", conta o ourives que colabora com ourivesarias e igrejas. "Quando veio cá o Papa, estive a fazer dois relicários em prata. Um para ele e outro para a Grécia." Carlos mudou-se para o andar há dois anos, porque não gostava da sala onde trabalhava noutra rua da Baixa. "Estava lá muito sozinho. Aqui brincamos uns com os outros e vamos almoçar juntos." Em cima da mesa está um turíbulo que uma igreja de Lisboa mandou limpar e soldar. Num saco ao lado, entre ferramentas, vê-se a ponta de uma grande cruz de prata. "Isso é para arranjar. Mas as coisas não ficam aqui. Levo para casa onde tenho um cofre e alarmes."

O GRAVADOR Joaquim Martins, de 55 anos, está habituado a lidar com peças valiosas. Desde os 11 anos que grava nomes em alianças e "noutras coisas de ourivesaria, quase tudo à mão". A sua mesa de trabalho está encostada a uma janela para ter o máximo de luz possível. "Uso um buril para fazer coisas muito minuciosas, mas também tenho uma maquineta que grava alianças por dentro." Joaquim está na Rua dos Douradores desde 1997 e nunca teve acidentes com as peças. "Quer dizer, às vezes foge--me a mão e faço um risco (costumo chamar-lhe um foguete), mas tenho uma máquina para polir e as peças voltam a ficar como novas." O balcão onde exibe as melhores gravações, como uns desenhos chineses num leque de prata, pertenceu a uma loja de venda de ouro que ali funcionava. "Fiquei com tudo o que era deles, com o balcão, com os armários, com os cofres... Se as coisas ainda estão boas, para quê deitá-las foras?"

O RELOJOEIRO Filipe Cipriano lembra- -se bem do movimento do depósito de ouro ao lado da sua relojoaria. "As vendedeiras da Baixa faziam uma fila que ia até à entrada da porta [do andar, ao fundo do corredor]. Vendiam de tudo às escondidas da polícia e depois vinham aqui comprar ouro." A loja de conserto de relógios onde trabalha desde 1968 pertencia "a um senhor que foi para a América e ficou lá no cemitério do sítio". Era o Nunes, que ainda dá nome à loja. "Há muita gente que me trata por Nunes", diz Filipe Cipriano. "A mim não me faz confusão nenhuma."

Noutros tempos, o relojoeiro, que agora trabalha para ourivesarias, chegou a ter cinco empregados. "Mas o movimento aqui era diferente. Havia um alfaiate que tinha oito empregadas e também um calista com muita gente."

OUTROS INQUILINOS Hoje em dia, a sala mais concorrida é a de Leonel de São Tomé. À porta há duas cadeiras para os que esperam ser atendidos, mas a maior parte dos clientes fica impaciente no corredor. "É uma empresa que manda dinheiro para São Tomé", explica Sousa Martins, já que o empregado tímido que nos atende não pode falar "sem autorização do patrão, que não está em Portugal". "Eles cobram cinco euros para mandar dinheiro para lá. Às vezes até me dá pena, oiço-os no corredor ao telefone a dizer: ''Já te mandei 15 euros.''"

No andar de cima do prédio funcionava a pensão Santiago, que "foi desactivada há quatro ou cinco anos", diz Sousa Martins, o arrendatário do andar. "O senhorio também já me disse que quer o prédio para ele, mas eu não tinha coragem de fazer isso, de mandar estas pessoas embora do andar, algumas que já estão aqui há mais tempo que eu."

O inquilino mais antigo era o pai de Lucena de Estevão, o contabilista que ainda tem o seu escritório numa porta no hall - onde também se fazem cursos de tapetes de Arraiolos e bordados da Madeira - mas que só vem às vezes de manhã. A maior parte das pessoas tem o horário que quer. Isabel e a sua irmã Margarida são as mais atarefadas. As costureiras especializaram-se em trabalhos de urgência para lojas da Baixa e fazem dezenas de arranjos por dia.


(in «i»).

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