«Há pessoas que fazem centenas, milhares de desenhos, que pintam obsessivamente durante anos, que criam obras de arte em quartos fechados ou em enfermarias de hospitais psiquiátricos. Não se vêem como artistas, mas há já vários museus por todo o mundo com o seu trabalho. Em Portugal existe uma colecção de Arte Bruta, do Hospital Miguel Bombarda, com "grande valor histórico", dizem os peritos.
Os vizinhos não tinham dúvidas de que Henry Darger era um homem estranho. Discreto, metido consigo, este guarda de um hospital ia de casa para o emprego, em Chicago, e só saía novamente para ir à missa - o que chegava a fazer cinco vezes por dia. Mas o que era realmente estranho era o facto de ele apanhar lixo na rua e levá-lo para casa.
No entanto, nada disto fazia adivinhar o que se passava dentro do quarto alugado em que Darger vivia há 31 anos, no número 851 da Webster Avenue. E sobretudo o que se passava dentro da sua cabeça.
Quando Darger, já com dificuldade em subir as escadas, teve que ir para um asilo, o fotógrafo e designer Nathan Lerner, que era seu senhorio e de certa forma protector (manteve-lhe a renda baixa e até lhe organizou uma festa de anos, conta John Macgregor na biografia que escreveu de Darger), fez uma descoberta extraordinária.
No quarto de Darger, por entre caixas de tintas, e de lápis de cores, e pilhas de revistas, estava uma obra de dimensão esmagadora: só um dos livros, intitulado The Story of the Vivian Girls, in What is Known as the Realms of the Unreal, of the Glandeco-Angelinian War Storm Caused by the Child Slave Rebellion, tinha 15.145 páginas. É considerada a mais longa obra de ficção alguma vez escrita.
Darger é hoje visto como um dos mais desconcertantes artistas no campo da Outsider Art ou Arte Bruta - uma das mais importantes colecções nesta área foi iniciada pelo pintor e escultor Jean Dubuffet e está actualmente reunida no museu Colecção de Arte Bruta de Lausanne, Suíça. [..]
A colecção portuguesa
Em Portugal existe uma importante colecção de arte de doentes mentais - Arte Bruta ou Outsider Art, como é chamada. Os desenhos, pinturas, e até fotografias que constituem a colecção do Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, formam um conjunto "de grande valor em termos da história das criações autodidactas nos hospitais psiquiátricos europeus", de acordo com a avaliação feita por Lucienne Peiry, directora do museu Collection de l"Art Brut de Lausanne, Suíça, uma das mais importantes instituições ligadas a este tipo de arte.
O museu suíço e a sua directora subscreveram um abaixo-assinado pela preservação do Museu de Pintura de Doentes e das Neurociências do Hospital Miguel Bombarda. "As obras têm um valor histórico importante em termos da produção feita nos hospitais psiquiátricos no início do século XX", confirma ao P2, numa conversa telefónica, Sarah Lombardi, do museu de Lausanne.
Antigamente não se valorizava este tipo de trabalhos. Lombardi dá o exemplo de Aloïse, uma das artistas representadas na colecção suíça. "Quando foi internada num hospital psiquiátrico começou a criar. Ao princípio destruíam-se as suas criações, mas depois houve uma médica que se interessou...".
No Miguel Bombarda, o caso de Jaime Fernandes, que aí esteve internado, tem semelhanças com o de Aloïse. Muitos desenhos deste artista que hoje está representado em museus como o de Lausanne ou a colecção abcd, em Paris, ou ainda na Gulbenkian, em Lisboa, foram destruídos ou perderam-se. O que Victor Freire, um dos administradores do hospital - que está a encerrar sem que os ministérios da Saúde e da Cultura tenham tomado uma posição sobre o futuro do museu e da colecção -, quer garantir agora é que as obras que chegaram até nós desde o início do século XX não se percam também. Daí o apelo e o abaixo-assinado - que teve o apoio de figuras como a pintora Paula Rego e o neurocientista António Damásio.
John Maizels, editor da revista Raw Vision, editada no Reino Unido e especializada em Outsider Art, foi um dos subscritores do apelo. "É uma colecção de Outsider Art muito importante e é parte da herança cultural de Portugal", escreveu. Ao telefone com o P2 é ainda mais afirmativo: "É uma colecção com coisas muito antigas, e com grande valor histórico. Se o seu país não estiver interessado em cultura e não a quiser que diga, porque há muita gente no mundo interessada."
Maizels destaca o facto de ser uma colecção com obras muito antigas, "o que é raro". E diz que não tem conhecimento de que exista na Península Ibérica outra desta dimensão - estão identificadas 3500 obras desde 1902. "O que é que fazem se encontrarem moedas romanas? Vão querer pô-las num museu, não? Pois aqui é a mesma coisa." Há já hoje muitos museus e coleccionadores deste tipo de arte, que é reconhecida como "uma componente muito importante no desenvolvimento da arte visual e da sua relação com o espírito humano criativo".
Jean Dubuffet também teve inicialmente grandes dificuldades em conseguir um lugar para a sua colecção, lembra Sarah Lombardi. Face ao desinteresse manifestado por Paris, o artista acabou por escolher Lausanne. Hoje o Museu de Arte Bruta tem mais de 40 mil visitantes por ano interessados em descobrir os imensos mundos que existiam dentro das cabeças destas pessoas que nunca disseram de si próprias que eram artistas.»
In Público
Por Alexandra Prado Coelho
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