quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Sophia na Biblioteca Nacional.





Cartas, fotografias, inéditos e todo o mundo de Sophia na Biblioteca Nacional
por MARIA JOÃO CAETANO

Nos cadernos onde escrevia os seus poemas, Sophia anotava também números de telefone, fazia listas de compras, esboços de vestidos que iria encomendar à costureira. Nas cartas que escrevia ao marido, Francisco, quando ele se encontrava preso em Caxias, a poeta contava-lhe as coisas banais do seu dia-a-dia mas também declarava o seu amor: "Penso em ti continuamente, com aquele poder de concentraçã que tu conheces. Estamos juntos, juntos."

Estes são apenas alguns dos pormenores sobre Sophia de Mello Breyner Andresen que se tornaram mais claros com a revelação do espólio da autora - espólio doado pela família à Biblioteca Nacional e de que se poderá apreciar uma parte na exposição "Sophia - Uma Vida de Poeta".

Sophia morreu a 2 de Julho de 2004, deixando dois escritórios "cheios de coisas" na sua casa na Travessa das Mónicas, em Lisboa. Em 2006, a casa foi vendida e a família arrumou os papéis em 89 grandes caixas que foram depois colocadas numa garagem emprestada. Este era o espólio de Sophia e cabia a Maria Andresen, filha mais velha, especialista em literatura e também ela poeta, tomar conta do legado da mãe. "Ela pediu-me que o fizesse", conta. "Disse-o inclusivamente a outras pessoas e eu não poderia não o fazer." Mas não era só um dever, era também uma vontade. "Eu podia ter depositado tudo na Torre do Tombo. Pegava nos caixotes, entregava-os e um dia alguém iria ler aquilo. Mas fazia-me confusão entregar tudo aquilo sem saber o que é que continha. Parecia que estava a trair a minha mãe."

Havia, portanto, que tratar o espólio e para isso Maria pediu ajuda a uma especialista em arquivismo, Manuela Vasconcelos. "Queria saber que destino podia dar a um espólio, as condições do tratamento, modos de conservar, de arquivar. Eu não o saberia fazer sozinha", conta a filha da poeta que, ao princípio, estava convencida de que seria um espólio pequeno. "A minha mãe rasgava muita coisa e, por isso, pensava que o mais provável é que não houvesse muitos manuscritos nem inéditos. Só quando encaixotámos tudo me dei conta da enormidade do espólio e do trabalho que seria." Em Maio de 2007, Maria pediu ajuda a Guilherme d'Oliveira Martins, director do Centro Nacional da Cultura, para que lhe disponibilizasse um espaço para trabalhar. E foi a partir daí que se começou a constituir a equipa (com Luísa Sarsfield Cabral e o apoio de Teresa Tamen, e Catarina Reis Gomes, do CNC), se pediram apoios e se pensou no que iria fazer-se ao legado de Sophia.

Se Manuela Vasconcelos tinha toda a técnica de arquivista, Maria Andresen tinha o conhecimento profundo da vida e da obra da autora. "Uma pessoa que conheça bem a obra lê um texto e pode dizer se é inédito ou não, se é uma versão anterior de um poema publicado, pode situar mais facilmente o texto na vida e na obra", explica. O trabalho prolongou-se por dois anos. "Reformei-me para me dedicar inteiramente. E, além dos dois dias por semana em que trabalhava com a Manuela, trazia muita coisa para ler em casa. Passei férias, fins-de-semana, noites a ler correspondência, histórias, diários. Foi muito cansativo e muito doloroso", conta Maria. "Esse entrar na intimidade, no que a gente não sabe, nos pensamentos de outra pessoa que é a minha mãe. Senti-me uma intrusa." E se a pesquisa era importante, Maria nunca deixou de ser a filha preocupada: alguns documentos, que considerou mais íntimos, ficaram guardados em sua casa. "Depois um dia se verá."

E conclui: "O ser filha enriqueceu a investigação e a investigação fez-me perceber melhor a minha mãe. Enriqueceu a minha relação com ela na medida em que lhe percebi a força e a fragilidade. E tornaram-se muito evidentes as articulações entre a vida e a obra."

Um trabalho enriquecedor e com surpresas pelo caminho. Correspondência, manuscritos, versões desconhecidas de textos, inéditos. Havia uma pequena arca na casa de Sophia onde ela guardava fotografias. Quando a poeta morreu, a filha Maria levou a arca para casa. "Um dia tenho que arrumar aquelas fotos", dizia. Em Março do ano passado, no dia do aniversário da irmã, Maria foi à arca à procura de uma fotografia antiga para lhe oferecer e foi com espanto que descobriu um fundo falso sob o qual se encontravam alguns dos mais antigos cadernos da mãe, ainda adolescente, "com muita poesia, muitas notas e reflexões, poemas que viriam a ser editados mais tarde".

"Chegar ao fim deste trabalho é um alívio", confessa a filha. O espólio está tratado e a homenagem a Sophia far-se-á ao longo dos próximos dias com a inauguração da exposição e um colóquio internacional: "É como um último presente que dou à minha mãe."

(in Diário de Notícias).

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