quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Uma cidade é uma coisa maravilhosa.





Um centro comercial de outro tempo
por CARLOS DIOGO SANTOSO

São poucas as pessoas que conhecem o espaço da Praça da Figueira, mas lojas de luxo requisitam os serviços

Podia ser mais um andar de habitação ou comércio da Baixa de Lisboa. Mas não. É uma verdadeira viagem no tempo até aos anos em que os centros comerciais não existiam - pelo menos como os conhecemos hoje. No segundo andar do número 222 da Rua dos Douradores, a porta está aberta durante todo dia e, em vez de haver quartos ou escritórios, existem lojas. Cerca de 14 espaços antigos, alguns abertos desde a década de 60.

Não há nenhuma relojoaria de luxo - como nos actuais grandes espaços comerciais -, mas existe um relojoeiro que faz os arranjos "quase impossíveis" de que essas lojas se gabam. Não há nenhuma grande superfície de material informático, mas existe um quarto- -museu com várias relíquias dessa área, e um especialista na reparação de máquinas registadoras e de escrever antigas. Não há ourivesarias, mas existem artesãos que fundem e moldam o ouro à vontade do cliente - que muitas vezes é a loja conceituada do shopping mais próximo.

Quem visita o espaço, na esquina da Rua dos Douradores com a Praça da Figueira, fica com a sensação de que o tempo não passou por este verdadeiro centro comercial à antiga. "Um local onde até Fernando Pessoa pode já ter entrado, porque não sabemos ao certo quando este espaço nasceu", diz com orgulho Filipe Cipriano, um relojoeiro que trabalha naquele sítio desde 1968.

Antes de entrar, de frente para a porta (escancarada), um conjunto de setas de madeira aponta para a direcção das várias lojas. Mas, dada a sua pequena dimensão, nem era preciso. Para a direita, um guardador de livros e a casa das máquinas registadoras. Para a esquerda, o relojoeiro, o ourives e o gravador. O corredor, cheio de portas, é estreito nos dois sentidos. O cruzamento de duas pessoas não é tarefa fácil.

"Quando cheguei aqui, no fim dos anos 60, isto já era assim, com várias lojas. Mas muitas delas já fecharam, como o calista, os armazéns de ouro e o alfaiate" disse, ao DN, Sousa Martins, o inquilino do andar especialista em máquinas registadoras. O silêncio do espaço - que à primeira vista parece fantasmagórico - é interrompido pelo som do telefone. Do outro lado, uma senhora desesperada pede ajuda para pôr a sua registadora a trabalhar. Sousa Martins dá todas as explicações e no fim diz em tom de brincadeira: "Agora mando a factura da ajuda por pombo-correio, trate-o bem."

Na ponta oposta do corredor tudo continua calmo. Enquanto arranja mais um relógio - usando apenas a luz das janelas que deitam para a Praça da Figueira -, Filipe Cipriano revela que não gosta muito de relógios. O homem que vê o salazarismo como a melhor fase do seu negócio garante que aquilo que lhe dá prazer é "fazer aquilo que os outros dizem que é impossível". "Nunca deixei uma máquina por arranjar", contou.

Num recanto, que existe naquela ponta do corredor, está a oficina de Joaquim Martins. O gravador, que tem expostos os seus melhores trabalhos, mostra-se pouco confiante quanto ao futuro do espaço. "Já ouvi dizer que isto vai ser um hotel. É uma pena."

A necessidade de explicar a responsabilidade dos seus ofícios é comum entre todos. Sousa Martins, responsável pela loja de registadoras, lembra os tempos em que as máquinas de escrever da Presidência da República eram reparadas por ele. "Mas não foi só da presidência...", disse. Quase entrando numa disputa para mostrar quem teve o trabalho mais importante em mãos, Carlos Fortes avançou que já fora responsável por arranjos "no colar do gibão de D. Dinis."
(in Diário de Notícias).

1 comentário:

J A disse...

Hummm.....desconhecia por completo mas....já ficou com o nr. 1 na lista de espera para a próxima visita !