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Documentário
"Estas pessoas sofrem mais de isolamentodo que de solidão"
por EURICO DE BARROS
'Lisboa Domiciliária' é um documentário de Marta Pessoa sobre sete idosos de Lisboa que são prisioneiros das casas onde vivem, por problemas de saúde mas também devido ao estado de degradação e à arquitectura adversa dos prédios. Estreia-se amanhã
Como apareceu a ideia de Lisboa Domiciliária?
Esta ideia tem já muito tempo. Eu sou de Lisboa, nasci na Lapa, em 1974, à beira da revolução. A minha família é quase toda de Aljezur mas considero-me lisboeta. Uma lisboeta sempre um bocado zangada, que é a melhor maneira de se ser lisboeta. Sempre vivi em Lisboa, mas não no centro. Fui estudar para o Bairro Alto, para o Con- servatório, e naquela altura praticamente vivia no Bairro Alto. Foi aí que comecei a reparar que as pessoas que estavam às janelas, lá no alto, não coincidiam com as que andavam na rua. A questão começou a surgir por causa da minha avó, também algarvia mas lisboeta há muito tempo, como algumas das senhoras do filme. Ela ficou numa situação complicada, e ainda por cima morava num primeiro andar. E ela era muito andarilha, fazia muita vida de cidade, de que teve que abdicar, o que me meteu muita impressão. Eu tinha feito também uma curta, chamada Manual do Sentimento Doméstico, que me fez andar muito pela Baixa e reparar nessas mesmas casas e águas-furtadas.
O filme mostra de forma muito clara como as pessoas de idade podem ficar prisioneiras em suas casas, por causa da saúde, mas também por morarem em andares altos e prédios degradados.
Eu já tinha a noção do que a casa gasta por causa do que tinha acontecido à minha avó, e por isso empenhei-me em filmar também a arquitectura, que é uma barreira muito importante. Uma das senhoras do filme vivia num prédio tipicamente pombalino, numa água-furtada, e só havia mais um inquilino, no rés-do-chão. A casa tinha duas janelas, uma delas dava para a parte da frente, e tinha três escadinhas. E como a senhora não as conseguia subir, não podia ver a rua. Isto também é uma questão económica, porque as rendas são muito baixas nas águas-furtadas e nos andares altos, os inquilinos são pessoas de poucos meios, e os senhorios não fazem obras porque as rendas são baixas...
Já conhecia algum dos casos que retrata ou andou à procura de pessoas nesta situação?
Infelizmente, havia muito por onde escolher. Decidi que não ia bater à porta das pessoas porque elas não as iam abrir. Por isso, lembrei--me de ir à Santa Casa da Mise- ricórdia, que me negou o acesso. Isto pôs-me de alerta, porque vi que havia ali uma dupla barreira: não só as pessoas estão isoladas, como também há algo que as isola. Descobri então que há centros sociais e paroquiais que prestam apoio domiciliário aos idosos, e alguns deles são independentes, funcionando muito em regime de bairro e burocraticamente mais leves. Em Santa Catarina, por exemplo, visitei muita gente, mas nas Mercês e no Campo Grande foram as assistentes sociais que me indicaram pessoas que estariam mais receptivas.
Elas ficaram logo abertas à ideia de receberem uma câmara de filmar em casa?
Elas são todas muito diferentes, mas decidiram ser filmadas a partir do momento em que perceberam o que eu lá ia fazer. As coisas não foram muito combinadas. Escolhi aquelas sete pessoas que ali estão e não filmei mais nenhuma, tirando um casal que depois decidi não incluir.
Começou logo a filmar ou falou antes com as pessoas para as preparar para a vossa presença?
Entrei em casa delas devagarinho, sem a câmara. Após as primeiras conversas, levei a máquina fotográfica. Depois, veio o contacto com a câmara de filmar.
O problema destas pessoas é menos a solidão do que o isolamento?
Sim. Uma das senhoras, por exemplo, diz que gostava de ir ao cabeleireiro, mas é óbvio que não pode chamar os bombeiros para a levar. Devia haver estruturas sociais para prover às necessidades essenciais destas pessoas, da alimentação à movimentação. Porque muitas delas não se importam de estar sozinhas e o mundo vai-lhes chegando pelas notícias da televisão ou da rádio. Há é que pensar nos cuidados básicos.
(in Diário de Notícias).
"Estas pessoas sofrem mais de isolamentodo que de solidão"
por EURICO DE BARROS
'Lisboa Domiciliária' é um documentário de Marta Pessoa sobre sete idosos de Lisboa que são prisioneiros das casas onde vivem, por problemas de saúde mas também devido ao estado de degradação e à arquitectura adversa dos prédios. Estreia-se amanhã
Como apareceu a ideia de Lisboa Domiciliária?
Esta ideia tem já muito tempo. Eu sou de Lisboa, nasci na Lapa, em 1974, à beira da revolução. A minha família é quase toda de Aljezur mas considero-me lisboeta. Uma lisboeta sempre um bocado zangada, que é a melhor maneira de se ser lisboeta. Sempre vivi em Lisboa, mas não no centro. Fui estudar para o Bairro Alto, para o Con- servatório, e naquela altura praticamente vivia no Bairro Alto. Foi aí que comecei a reparar que as pessoas que estavam às janelas, lá no alto, não coincidiam com as que andavam na rua. A questão começou a surgir por causa da minha avó, também algarvia mas lisboeta há muito tempo, como algumas das senhoras do filme. Ela ficou numa situação complicada, e ainda por cima morava num primeiro andar. E ela era muito andarilha, fazia muita vida de cidade, de que teve que abdicar, o que me meteu muita impressão. Eu tinha feito também uma curta, chamada Manual do Sentimento Doméstico, que me fez andar muito pela Baixa e reparar nessas mesmas casas e águas-furtadas.
O filme mostra de forma muito clara como as pessoas de idade podem ficar prisioneiras em suas casas, por causa da saúde, mas também por morarem em andares altos e prédios degradados.
Eu já tinha a noção do que a casa gasta por causa do que tinha acontecido à minha avó, e por isso empenhei-me em filmar também a arquitectura, que é uma barreira muito importante. Uma das senhoras do filme vivia num prédio tipicamente pombalino, numa água-furtada, e só havia mais um inquilino, no rés-do-chão. A casa tinha duas janelas, uma delas dava para a parte da frente, e tinha três escadinhas. E como a senhora não as conseguia subir, não podia ver a rua. Isto também é uma questão económica, porque as rendas são muito baixas nas águas-furtadas e nos andares altos, os inquilinos são pessoas de poucos meios, e os senhorios não fazem obras porque as rendas são baixas...
Já conhecia algum dos casos que retrata ou andou à procura de pessoas nesta situação?
Infelizmente, havia muito por onde escolher. Decidi que não ia bater à porta das pessoas porque elas não as iam abrir. Por isso, lembrei--me de ir à Santa Casa da Mise- ricórdia, que me negou o acesso. Isto pôs-me de alerta, porque vi que havia ali uma dupla barreira: não só as pessoas estão isoladas, como também há algo que as isola. Descobri então que há centros sociais e paroquiais que prestam apoio domiciliário aos idosos, e alguns deles são independentes, funcionando muito em regime de bairro e burocraticamente mais leves. Em Santa Catarina, por exemplo, visitei muita gente, mas nas Mercês e no Campo Grande foram as assistentes sociais que me indicaram pessoas que estariam mais receptivas.
Elas ficaram logo abertas à ideia de receberem uma câmara de filmar em casa?
Elas são todas muito diferentes, mas decidiram ser filmadas a partir do momento em que perceberam o que eu lá ia fazer. As coisas não foram muito combinadas. Escolhi aquelas sete pessoas que ali estão e não filmei mais nenhuma, tirando um casal que depois decidi não incluir.
Começou logo a filmar ou falou antes com as pessoas para as preparar para a vossa presença?
Entrei em casa delas devagarinho, sem a câmara. Após as primeiras conversas, levei a máquina fotográfica. Depois, veio o contacto com a câmara de filmar.
O problema destas pessoas é menos a solidão do que o isolamento?
Sim. Uma das senhoras, por exemplo, diz que gostava de ir ao cabeleireiro, mas é óbvio que não pode chamar os bombeiros para a levar. Devia haver estruturas sociais para prover às necessidades essenciais destas pessoas, da alimentação à movimentação. Porque muitas delas não se importam de estar sozinhas e o mundo vai-lhes chegando pelas notícias da televisão ou da rádio. Há é que pensar nos cuidados básicos.
(in Diário de Notícias).
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