Os "carteiros" clássicos têm mais de 50 anos. Chegam a 'limpar' mil euros por dia. A reforma das leis penais tornou-lhes a vida mais fácil: o crime vai até cinco anos e não prevê prisão preventiva.
Praça da Figueira, Lisboa, 18.00. Uma tarde perfeita de Verão numa praça que é o coração da capital portuguesa, cheia de turistas. Encostados a uma parede estão três dos mais antigos carteiristas de Lisboa . "Já ganharam o dia", comenta um polícia. As autoridades chamam-lhes "carteiros" e sabem bem quem eles são: na Grande Lisboa, nos últimos cinco anos, foram identificados 1010 carteiristas, cem são mulheres.
Os "carteiros" clássicos da capital têm mais de 50 anos e andam na actividade há décadas. A reforma penal de 2007 facilitou-lhes a vida porque a moldura penal do furto por carteirismo vai até cinco anos de prisão, o que já não permite a aplicação da prisão preventiva. A alternativa à pena de prisão, neste crime, é a pena de multa até 600 dias. A impunidade do crime não deixa de estar associada à diminuição do número de queixas em todo o País.
Entre 21 de Junho e 15 de Agosto deste ano registaram-se 778 participações por furto de carteira no distrito de Lisboa, menos 213 do que em igual período do ano passado.
Actua com a família toda
O mais "habilidoso" dos "carteiros" de Lisboa também costuma frequentar o Rossio e a Praça da Figueira, nas pausas para almoço e final do dia. "Zé do Porto", na casa dos 50 anos, recebeu a alcunha da sua cidade natal. Actua em grupo, com a mulher, uma ex-prostituta de Lisboa, o filho de 22 anos, um irmão, e agora até o neto bebé que o grupo leva de carrinho para os eléctricos 15 e 28, os mais visados pelos carteiristas.
O "Zé do Porto" foi detido pela última vez em flagrante delito no passado dia 8, depois de furtar a carteira a um turista que desatou aos gritos, no eléctrico 15, em Alcântara. Segundo apurou o DN com fontes policiais, aquando do incidente, a mulher de Zé do Porto fugiu e ele acabou detido pela PSP na companhia de um irmão e de um cúmplice, também detidos. O valor furtado era de 350 euros. Presente ao tribunal de Pequena Instância Criminal, ficou apenas constituído arguido com Termo de Identidade e Residência (TIR).
Nos últimos dois anos, o famoso "carteiro" foi detido em flagrante delito pela PSP cinco vezes, sempre na companhia da mulher e de outros elementos do grupo. Nos 20 anos que já leva a "limpar" carteiras, só cumpriu pena efectiva de prisão uma vez - esteve "dentro" oito anos.
Investigação difícil
Na PSP de Lisboa, os agentes que melhor conhecem a actividade dos carteiristas são os da brigada de investigação criminal da Divisão de Segurança e Transportes Públicos. A investigação deste crime, que só permite detenção em flagrante delito, é feita na rua, seguindo os movimentos dos carteiristas nos eléctricos, autocarros e metro, mas também com recolha de prova através do visionamento das cassetes de vídeovigilância dos transportes públicos (eléctricos, autocarros e metro).
Muitos dos carteiristas de Lisboa migram no Verão para o Algarve, para a peregrinação do 13 de Agosto em Fátima e para o Sul de Espanha, adiantou ao DN fonte policial. Cinco carteiristas foram identificados pela GNR, em Fátima, durante o 13 de Agosto.
Do ponto de vista da investigação, os que têm dado mais trabalho à PSP são os bandos de carteiristas do Leste europeu, sobretudo romenos, que actuam em grupos de cinco ou seis distribuídos pelos eléctricos 15 ou 28 ou pelos autocarros. Segundo adianta fonte policial, os romenos instalaram-se no ramo por altura do Campeonato Europeu de Futebol, que decorreu em Lisboa em 2004, e aprenderam uns truques com os velhos mestres lisboetas.
O modus operandi é muito similar aos clássicos: um deles provoca uma manobra de diversão como um empurrão casual à vítima e faz "tampão" para o outro levar a carteira sem ninguém se aperceber. A carteira depois passa de mão em mão até que um dos membros do bando sai, impune, do eléctrico. Também há carteiristas portugueses a trabalhar com romenos, segundo apurámos com fontes policiais.
Muitas vezes os "carteiros" nem se dão ao trabalho de fazer a investida no interior do eléctrico. Põem--se na fila e atacam a vítima aí, depois do clássico "empurrão". Um dos pontos de ataque é o Elevador da Glória, que sobe dos Restauradores ao Príncipe Real. Outro é o muito visitado Elevador de Santa Justa, onde a PSP até já teve de colocar agentes em serviço gratificado dada a afluência de carteiristas. E, para os golpes no interior de transportes, os mais utilizados são o eléctrico 28, que percorre quase toda a Lisboa antiga, e o eléctrico 15, que vai até Algés.
Os carteiristas só arriscam ficar em prisão preventiva e cumprir uma pena que pode ir até oito anos por furto qualificado se se provar que o detido é "membro de bando destinado à prática reiterada de crimes contra o património", segundo o artigo 204.º do Código Penal. Se a "coisa furtada for de diminuto valor, "não há qualificação do crime e a pena nunca será superior a cinco anos. E o "diminuto valor" da carteira abrange a maior parte dos casos, pois é um valor que seja inferior a cem euros.
Lucros avultados
Os lucros diários de um carteirista podem chegar aos mil. Com sorte, dois mil euros, como um já contou à polícia. Varia consoante o número de investidas. Os "carteiros" clássicos gastam quase tudo o que ganham na batota, nos casinos e na bebida. Os mais novos gastam os lucros sobretudo na droga.
É na Praça da Figueira que se costumam encontrar e almoçar. Nas traseiras da Praça da Figueira, no Rossio, há uma nova geração de ladrões a actuar, os magrebinos, que furtam carteiras aos turistas sentados na esplanada da Pastelaria Suíça, segundo apurámos com fonte policial. Todos se respeitam e têm o seu "território".
O Rossio já foi centro da espionagem e dos exilados europeus durante a II Guerra Mundial. Os mil olhos da praça lisboeta seguem agora outros movimentos. E nós, incautos, nem reparamos.
(Diário de Notícias).
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