sábado, 31 de julho de 2010

Projecto EVA - Exclusão de Valor Acrescentado.

Projecto EVA
O Bairro Alto é... "pão quente"
Cláudia Sobral
Cinco designers quiseram ver o "bairro que ainda é bairro" pelos olhos dos moradores mais antigos e agora querem mostrá-lo aos que julgam que ali tudo é noite e bares
Um jantar comunitário com pão quente, fêveras e fado é pretexto para uma ida colectiva às compras no Bairro Alto. Moradores e gente de fora vão-se juntando, ao final da tarde, no +Skillz, que é um espaço de actividades para crianças e jovens que acolheu o projecto Bairro Alto É... São distribuídos sacos para as compras. E começa a viagem, guiada pelos próprios moradores.
Primeiro, uma padaria. Carla Silva, nascida e crescida no Bairro Alto, é cicerone e vestiu-se a preceito: vestido comprido azul-escuro, o cabelo ruivo pintado apanhado por um gancho com uma flor dourada.
O objectivo do Bairro Alto É..., inserido no projecto EVA - Exclusão de Valor Acrescentado, é dar voz ao "verdadeiro bairro", que já existia antes dos bares e das lojas e que lá permanece, mas "silenciado pelos invasores". "Não queríamos que este projecto se transformasse em mais uma invasão", explica Ana Relvão. Pediram às pessoas que escrevessem o que o Bairro Alto é para elas e que colocassem num saquinho um objecto que o definisse. "Houve pessoas que disseram que era pão quente, mas houve também quem colocasse um copo partido ou guardanapos amarrotados."

São quase 19h00. A padaria está quase a fechar. As luzes estão apagadas e a porta apenas entreaberta. Um homem espreita de lá de dentro. Entrega o saco com os 20 pães, sem muita conversa. Ao grupo que está a ser guiado são distribuídos papelinhos com a forma de uma das pedras da calçada, com o número da porta da padaria: 102. Segue-se o talho.

Este não é o bairro da noite. Vêem-se poucos turistas,há crianças que jogam à bola na calçada, em tronco nu. Um deles ajuda nas entregas do talho. O caminho foi curto até à Rua da Atalaia. Carla, que continua a guiar o grupo, detém-se um pouco antes da porta 49: "Isto é uma casa de fado. Vou lá dentro e já volto." E voltou, mas com a D. Fernanda, proprietária do Adega do Ribatejo, e a D. Raquel pela mão. Raquel bebe um copo de água e arranca: "Numa casa portuguesa fica bem pão e vinho sobre a mesa. E se à porta humildemente bate alguém..." O fado canta-se também duas ou três portas adiante. "Aquela senhora", aponta Ana Relvão, "está sempre sentada à porta de casa a cantar o fado. E aquela", diz, olhando para uma gata tricolor que faz cama no tejadilho de um carro velho.Bimba "é a gata mais conhecida do Bairro Alto".

Logo ali ao lado fica o talho Atalaia. Pede-sefêveras para o churrasco comunitário. E uma das designers, Susana António, vai preparar o jantar.

Falta a mercearia, uma das tradicionais. Vive escondida num emaranhado de pequenas ruas e tem pouco movimento. "A loja não tem nome, mas é conhecida como "mercearia da Glória"", diz o proprietário, Fernando. No Bairro Alto é como se ninguém tivesse apelido. Todos se conhecem pelo nome próprio.

O jantar e Susana António já esperam na Associação Rio de Janeiro. É preciso subir ao primeiro andar. As escadas são estreitas e a madeira - que já está a dar de si - range nalguns pontos. "É aqui que se ensaia para as marchas populares", frisa Carla Silva. Trata de tudo como se o projecto fosse seu. E também é.

O período de residência artística, durante o qual nasceu este projecto comunitário, termina agora, mas a ideia de mostrar o Bairro Alto a quem só o conhece à noite terá continuidade. As visitas guiadas repetir-se-ão no último sábado de cada mês, sempre com um tema e percursos diferentes. A organização passará, aos poucos, para as mãos de quem aqui mora, como Carla. "O designer cria, mas depois tem de ter a capacidade de se afastar", explica Susana. Cada viagem por lugares emblemáticos do Bairro Alto será conduzida por três pessoas e terá espaço para dez visitantes inscritos. "A ideia é tornar isto sustentável, mesmo para as pessoas que ficarem a tratar do projecto, por isso é possível que as visitas venham a ser pagas", explica Ana Relvão.

(in Público).

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