quinta-feira, 3 de junho de 2010

Vilas Operárias: a lenta agonia.

O arraial já não passa aqui
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Sónia Simões
As "aldeias" dentro da capital, que no século passado fervilhavam de gente, estão a morrer. Dantes vivia-se ali como se todos fossem uma família e as festas populares ajudavam a estreitar essa relação. Hoje, os poucos que restam, não sabem o nome do vizinho. Mas há pátios onde os brasileiros estão a trazer de volta a vida de outros tempos

O sotaque do Porto foi desvanecendo nas palavras de Alzira Pinto à medida que os 77 anos de vida lhe enrugaram o corpo. Tinha 16, quando foi arrastada pelo padrasto para a Vila Dias, em Xabregas, Lisboa. E aqui ficou. Encostada à parede vermelha do bairro, ainda se lembra quando a água e luz chegaram à sua pequena casa. Os passos de dança nas festas de Santo António. O ambiente familiar. E o fim. O arraial já não passa aqui.

"Mudou tudo. Cada um vive por si. Já há moradores que não conhecemos e agora tenho de trancar a porta senão roubam-me", desabafa Alzira . Apesar da desconfiança, não recusa abrir a porta de casa em memória dos tempos em que a vila era uma família só.

Na caixa das recordações, onde guarda retratos dos falecidos marido e filho, mostra um dos arraiais da época. Não teria 20 anos quando o altar do Santo António era erguido em plena rua e todos dançavam e partilhavam sardinha assada.

Chegou pela mão do padrasto, movido por uma proposta de emprego numa fábrica. Também ela trabalhou numa fábrica de botões até casar. "Eu vivia no n.º 66, mas casei e vim para aqui." Ela e o marido dormiam no quarto onde outrora chegaram a dormir seis filhos e um casal. Na sala ficavam os sogros.

Na altura, a água foi puxada pelos "antigos" de um chafariz em Xabregas. Também era aqui que Alzira ia ao tanque deixar a roupa em sabão. Hoje, sozinha, conseguiu ampliar a habitação de primeiro andar. Do velho terraço fez uma pequena sala. Na cozinha construiu uma casa de banho. Mas as constantes infiltrações não permitem melhorias. Os 35 euros pagos mensalmente ao procurador de um senhorio, que deixou de conhecer, não chegam para mais.

A Vila Dias foi construída em 1888 junto a um caminho-de-ferro e ao rio, um local atractivo para a construção de fábricas na segunda metade do séc. XIX. Servia de alojamento ao pessoal que trabalhava nas fábricas e que não podia suportar rendas elevadas.

Melhores condições encontram os moradores da "zona VIP" da Villa Sousa - reconstruída em 1889 tendo como base um palácio localizado na colina da Graça - como lhe chamam os ocupantes do lado oposto em tom de brincadeira. Os antigos contam que o edifício forrado a azulejo era um convento, mais tarde vendido a um particular. Na zona frontal, as casas são amplas "e caras". Do outro lado do pátio, multiplicam-se os fogos.

É deste lado que vivem Nildo Silva, 41 anos, a mulher Vânia, 40, e mais recentemente a filha dela, Thais, 18. São brasileiros e foi ele quem descobriu a vila. "Parece que vivemos numa aldeia com tudo à porta", refere Nildo. A vista da janela não é privilegiada. Dá para uma parede. No lado oposto, o vip, vê-se o rio e o Cristo-Rei.

Assunção Redondo, 62 anos, passou mais de metade da vida num rés-do-chão da vila. Lembra que ali, por proibição do senhorio, não se comemorava o Santo António. Mas no ano passado foi diferente. As famílias brasileiras romperam com a tradição. "Eles trouxeram a alegria ao pátio", diz.

Mas, até ser visto como uma vantagem, foi difícil. Enquanto come farinheira assada com esparguete - uma mistura gastronómica que garante não encontrar em Santa Catarina, no Brasil -, Vânia refere que Assunção foi uma das vizinhas mais difíceis de conquistar. "Aos domingos fazemos sempre churrasco na rua. Vêm amigos nossos brasileiros e agora já conseguimos que os vizinhos comecem também a participar", diz.

Os imigrantes são os novos moradores nos pátios de Lisboa. Aceitam casas pequenas a custos reduzidos e a comunidade brasileira parece trazer nova vida aos pátios, muitos deixados ao abandono.

Escondida na Rua Senhora da Glória, a entrada para o pátio Rodrigues conduz a um aglomerado de 41 casas pintadas de amarelo, que se dividem entre dois e três pisos, cujo acesso é feito por escadas de ferro que desembocam em verdadeiras pontes de passagem.

As batidas da música soam da casa de uma família brasileira. Mas estão longe das noites de fado ainda na memória de José Carlos Gonçalves, 58 anos. Era adolescente e amante de guitarra portuguesa quando as noites eram passadas à porta de casa em cantorias com amigos, com direito a intervalos para um copo de vinho do Porto - sempre oferecido pelos vizinhos. "Cheguei a tocar com a Amália Rodrigues na campanha do MFA [Movimento das Forças Armadas]", sublinha.

Um passado cada vez mais longe. "Agora, as casas são arrendadas a custo baixo. Vivem dezenas de pessoas numa habitação", critica. Durante quase dois anos "foi um problema". As casas foram arrendadas a pessoas que nunca pagaram a renda. "O pátio morreu. Todos os dias vinha cá a polícia, eram facadas, tráfico de droga. Acabaram uns detidos e outros expulsos", conta agora que já reina a paz.

À entrada do pátio amarelo, José Carlos colou à parede o brasão de mármore da quinta que, em 1902, deu lugar ao bairro operário. Conta que a herdade chegou a ser propriedade de freiras, mas que as casas foram construídas para operários com baixos rendimentos.

Há uns anos, José Carlos e a esposa, Maria Cândida, conseguiram comprar a casa por três mil euros. Ao fundo do pátio há ainda um prédio sobre uma encosta. "As condições são péssimas. As portas da minha casa estão descaídas e aquele prédio corre o risco de ceder", arrisca José Carlos, lembrando a derrocada da Vila Martins, nos Anjos, que, no início do mês, deixou três famílias desalojadas.

Arminda Gonçalves nasceu há 65 anos à porta do n.º 2 da Rua 1 da Vila Maia, em Campo de Ourique. Foi ali que a mãe deu à luz 22 bebés, dando apenas a cinco o privilégio de crescerem. "Naquele tempo era assim...", desculpa Arminda, enquanto folheia o álbum de fotografias de quando brincava na rua, agora alcatroada.

Arminda era ainda criança quando em Campo de Ourique a fruta era vendida em bancas na berma da estrada. Foi entre os amigos do pátio que conheceu o marido, Aníbal. Era com eles que jogava ao berlinde, ao pião e se empoleirava nas traseiras do eléctrico rua acima.

"Cheguei a partir-lhe a cabeça à pedrada", recorda, entre risos, enquanto pede desculpa "por falar à mulher de Lisboa". A amizade entre Arminda e Aníbal só se transformou quando ele regressou da guerra do Ultramar. Arminda despediu-se dele, antes de embarcar com destino à Guiné. Quando ele regressou, aproveitou o cenário da Madragoa e a festa do Santo António - o santo protector dos noivos - para a pedir em namoro.

"Fomos para a vindima e eu vim com a vindima feita. Fui obrigada a casar", conta, entre gargalhadas. Depois da cerimónia na Basílica da Estrela, descobriu que, afinal, não estava grávida, como suspeitou ela e a família.

O casal só saiu do pátio para morar uns tempos num quarto em Odivelas. Regressou e tentou manter a tradição com todos os familiares que ainda habitam na Vila Maia. Mas hoje está tudo diferente. Se se atreve a colocar o grelhador na rua para assar umas bifanas, há vizinhos que se queixam à polícia obrigando-a retirar tudo. "Já não somos uma família. Ninguém se fala, ninguém convive", critica. A prima Aida Figueiredo, 74 anos, concorda.

Era ainda uma criança quando para ganhar tostões ajudava a mãe no ofício de cartonageira - a fazer cartuchos de papel onde eram vendidas castanhas, arroz e açúcar. Mais tarde foi trabalhar para uma conhecida fábrica de chapéus. Fez centenas, mas não ficou com nenhum para recordação.

Guardou, sim, um exemplar da revista Crónica Feminina onde há 50 anos foi fotografada enquanto regava as plantas que rodeavam a janela da sua casa. Hoje, nas paredes do pátio, o único vestígio daquele tempo é a imagem da Nossa Senhora de Fátima por cima do n.º 10. Fernanda Gonçalves, filha de Aníbal e de Arminda, vive ali - na casa que era dos avós e não deixou que retirassem a imagem.

Nas paredes amarelas já não há floreiras. No chão, onde todas elas brincavam, há alcatrão e carros estacionados. Demasiados. Aqui já não se sente que se vive numa aldeia no coração de Lisboa.

A alguns metros, no pátio das Barracas, as paredes anseiam por pinceladas de tinta e mãos de restauro. Está degradada. No quarteirão, apenas a moradia que marca a entrada do pátio está recuperada. Lá dentro, sobram os dedos de uma só mão para contar os moradores. Todas mulheres. Viúvas.

Luzia Silva, 81 anos, é a mais velha. Na sua casa, apenas com dois pequenos quartos, alberga agora a moradora mais nova, a neta, de apenas seis anos.

Luzia já foi moradora de quase metade das casas do pátio. A dos pais, onde cresceu com quatro irmãos e permaneceu até morrerem. Depois do 25 de Abril, perdeu a casa e mudou para outra. Como considerava o contrato inválido deixou de pagar renda e acabou expulsa. Foram os familiares do jogador de futebol, o Calado, que lhe cederam a casa quando foram viver para Rio de Mouro, em Sintra.

Ao lado da porta de casa, permanece um poster com a imagem da Selecção Portuguesa de Futebol, sem o Calado, que ali deu os primeiros pontapés na bola. Luzia recorda que o Jardim da Parada era terra batida. Alguns dos prédios que agora contornam o pátio nem existiam.

Na loja, onde agora se encontram artigos de criança, havia uma leitaria. O leite provinha directamente de uma vaca. "Íamos buscá--lo em bilhas. Até que descobrimos que a mulher urinava para o leite para o fazer render."

Também aqui, no velho pátio onde metade dos fogos estão desabitados por falta de condições, havia arraiais, festas e muita dança. Agora já não há nada. Os velhos moradores sobrevivem com as escassas condições que se mantiveram. Nada mais.

Das dezenas de vilas e pátios que subsistem em Lisboa, algumas destacam-se pela sua imponência. Exemplo disso é o legado deixado por Francisco Grandella, o dono dos Armazéns Grandella, na Baixa lisboeta, que construiu na Estrada de Benfica uma vila operária para os seus funcionários.

A dimensão de cada ala de casas é indicadora de uma hierarquia. Na ponta, as pequenas casas separadas por dois pisos destinavam-se aos operários, segue-se uma fileira de casas de dois pisos destinadas aos encarregados. Na rua seguinte, que ganhou o nome de Grandella, grandes palacetes seriam destinados a altos cargos. Nenhum seria de Grandella, reza a história.

A última funcionária do Grandella viveu ali até há alguns meses. Os 96 anos levaram-na para o conforto de um lar. Hoje, quem habita nestas casas comprou-as já aos descendentes do empresário. Foi o caso de Maria Emília, 67 anos, 44 dos quais a viver no n.º 4 do bairro Grandella.

Diz Maria Emília que o filho de Grandella mantinha duas mulheres - uma em Portugal, outra em Inglaterra. Quando ele morreu, foram elas que venderam as moradias a um empresário espanhol. Aquele que posteriormente as vendeu a particulares.

À entrada do bairro, dois grandes edifícios de colunas maçónicas dão hoje lugar à biblioteca municipal e a uma creche - encerrada há dois anos por razões alheias aos moradores.

Aqui o silêncio e o sossego são dignos da vida no campo, mas o convívio entre moradores está longe da tradição perdida noutros pátios de Lisboa. "Já não há sardinhada, mas persiste um bom ambiente", garante a moradora. As ruas foram recentemente calcetadas e os estendais de roupa foram substituídos por lugares de estacionamento, que trouxeram o desgosto à vizinhança. "Não se percebe isto", critica.

As fábricas e o bairro de Grandella foram construídos na Quinta do Loureiro em finais do século XIX, perto da linha de comboio para facilitar o abastecimento de mercadorias. A partir destas unidades fabris, a mercadoria era vendida nos armazéns, na Baixa de Lisboa.

A ideia foi facilitar a habitação dos seus operários junto às fábricas, numa época de crescimento industrial e êxodo de população dos meios rurais para os urbanos. Hoje, a maior parte das fábricas já não existe e as habitações tomaram rumos diferentes.

Na Villa Sousa, na Graça, as famílias brasileiras fazem questão de fazer churrasco nas ruas e convidarem os vizinhos

(in Diário de Notícias).

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