terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Tollan: 30 anos.


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O barco que esteve três anos encalhado em Lisboa afundou-se há três décadas. Fez parte da paisagem.

O que é um monumento? Uma estrutura, geralmente de pedra ou metal, que está parado no mesmo lugar. Um sítio onde pousam gaivotas, um ponto de romaria para enxames de curiosos de panamá na cabeça e máquina fotográfica a tiracolo. Tendo isto em conta, o Tollan é um monumento. Ou foi. Durante três anos, este porta-contentores inglês esteve encalhado (e virado) no Tejo, mesmo em frente ao Cais das Colunas, no coração do trajecto desenhado pelos melhores grupos excursionistas.

Desde que o nevoeiro da manhã de 16 de Fevereiro se dissipou ele ficou ali, de casco para cima, à espera de ser rebocado, desmantelado ou fotografado. Acabou por sair do rio em Dezembro de 1983. Lisboa perdia um símbolo e as gaivotas perdiam um poiso, mas ganhava-se um Tejo mais navegável e seguro. Os lisboetas recordam-no com carinho. E não o deixam ir ao fundo.

Barco do amor. O Grémio Lisbonense recebeu em Março de 2007 a última festa do Tollan, um acontecimento que visava juntar vários encalhados (ler: solteiros) lisboetas à volta de música, bebida e recordações de um navio naufragado. A festa, lia-se nos convites a circular pela internet na altura, visava "dinamizar o mercado" e juntou mais de 100 pessoas, sobretudo mulheres acima dos 30. Vera Soares e Rui Lucas estiveram no Grémio nessa última noite e encontram motivos para que a festa não se tenha repetido. "Havia todo o tipo de gente, mas a cena de engate era tão descarada que chegava a ser desconfortável", lembra Vera. "Uma autêntica batalha naval, com tipos a disparar para todos os lados. Lá para o final da noite o ambiente ficou estranho", recorda Rui.

Barco-cantina. Os mais saudosos do Tollan têm no número 134 da Rua dos Remédios um lugar para desfiar memórias - ou bacalhau cozido com batatas, uma das especialidades. O restaurante Tolan (durante apropriação popular ao nome do barco roubou-se um "l") é um estabelecimento simples que serve comida tradicional portuguesa a preços de ocasião. Morada frequente para jantares de turma, tem como principal referência ao barco encalhado uma pintura de autor incógnito na parede - e a proximidade geográfica à doca do Jardim do Tabaco, onde o barco encalhou.

As Páginas Amarelas registam ainda um Café Tolan, em Alverca, mas mais assinalável é a existência de um pão com esse nome à venda pelo Ribatejo: a forma é semelhante ao do casco do barco, tal como se via a partir do Terreiro do Paço. No fundo, não é muito diferente de um pão saloio.

Barco ao fundo. Na sua edição de 17 de Fevereiro o diário britânico "The Times" dedicava uma breve aos acontecimentos da manhã do dia anterior em Lisboa. "Três desaparecidos depois de barco britânico se ter afundado", titulava o texto assinado por um correspondente. A contagem de vítimas do naufrágio aumentou para quatro no dia seguinte. Depois do embate com o navio sueco Barranduna, 12 dos 16 tripulantes do navio saltaram para o nevoeiro e conseguiram salvar-se. Os outros quatro, que na altura do embate estavam nos camarotes, teriam oxigénio suficiente para viver durante mais de três horas, mas os mergulhadores não chegaram a tempo. O "Correio da Manhã" tratou de retratar esta realidade com uma frase em negrito: "Se não morreram afogados, morreram asfixiados". Entre as vítimas do acidente estava a mulher do oficial de máquinas, Colin Campbell, e tripulantes de origem indiana como Sashi Tampi. Este último ainda apareceu nas águas acenando para terra, mas acabou por desaparecer antes que um barco de salvamento o pudesse alcançar.

Os dias seguintes foram passados com buscas infrutíferas de mergulhadores portugueses - "subiram ao casco e bateram à procura de uma resposta sonora", descreveu o "Diário Popular" - e estrangeiros. Dois dias depois do naufrágio, o barco rodou 180 graus durante a maré cheia. E o Tollan não deu mais notícias.

Depois da motora Farrusca conduzir o reverendo Ravenshdale até aos destroços para a cerimónia fúnebre, duas semanas depois da tragédia, o Tollan foi abandonado à sua sorte, com a proa presa a uma âncora e o casco teimosamente à tona. Em Portugal não havia equipamento para retirar dali o navio e foi preciso esperar por intervenção estrangeira. Três anos depois, Lisboa despedia-se do Tollan.

Barco-estátua. Foi durante esse tempo que os lisboetas adoptaram a embarcação naufragada como símbolo da cidade - e de uma passividade logística difícil de explicar. No dia 2 de Dezembro a empresa alemã Sealift começou a virar o Tollan, que por esta altura e devido ao mau tempo estava com o casco de lado. Centenas de pessoas juntavam-se junto ao Tejo: "Um espectáculo nunca visto que nenhum lisboeta deve perder, aqui mesmo no centro da cidade", lembrava com pompa o "Correio da Manhã".

À beira-rio mantiveram-se outros pontos de atracção turística como a Torre de Belém ou Padrão dos Descobrimentos. Com mais história e menos susceptíveis aos caprichos das marés.

(jornal «i»).

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