terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Depoimento do Lisboa SOS ao Jornal de Notícias.

Tendo sido contactado pelo «Jornal de Notícias» para prestar um depoimento escrito sobre os grandes desafios que se colocam a Lisboa em 2010, enviámos um texto que aqui se publica na íntegra, agradecendo o interesse daquele jornal:
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No que se refere a Lisboa, há que ter presente, quer em 2010, quer nos anos futuros, que existem desafios de cultura cívica e de cultura política. De cultura cívica, porque a atitude do poder - e não poderemos falar apenas da CML, mas dos muitos «poderes» existentes numa capital - só mudará se os cidadãos mudarem de atitude.
Esta atitude cívica passa por dois vectores essenciais:
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(1) compreender-se, de uma vez por todas, que o Estado e a autarquia nunca conseguirão resolver os problemas da cidade se os cidadãos persistirem em alhear-se desses problemas ou, pior ainda, se mantiverem comportamentos de passividade e até de contributo activo para a degradação da sua própria qualidade de vida (o que é paradoxal, não é?), desde a colocação de marquises à tolerância para com os «graffiti», passando pela colocação de lixo nas ruas, de não-limpeza dos dejectos dos seus cães, de ausência de conservação dos edifícios e até da feitura de obras mínimas de reparação, de colocação de antenas parabólicas nas varandas, etc. Os cidadãos queixam-se, mas deviam olhar para si próprios. É tão fácil encontrar uma entidade abstracta, chamada «Câmara» ou «Estado», a quem se atribuem todas as culpas, enquanto, ao mesmo tempo, lançamos um pacote de cigarros no chão...

(2) compreender-se, de uma vez por todas, que a cidade não começa na porta da nossa casa, que tudo o que diz respeito a Lisboa diz respeito aos lisboetas. Os cidadãos são maltratados pelo poder porque não se envolvem civicamente na defesa da cidade que é a sua. Essa defesa pode assumir os mais diversos contornos, desde a formulação de petições ao uso da Internet e da blogosfera, mas também passa por «micro-acções» de tipo local, ao nível da rua, do bairro, de pequenos espaços públicos (jardins, equipamentos, etc.). Infelizmente, a tradição cívica dos portugueses é marcada pela mesquinhez, pela passividade, pela descrença pessimista ou, ao invés, pela ânsia de protagonismo e de mediatismo. Logo que surge alguém a participar, julga-se de imediato que tem intuitos obscuros de tirar o lugar ao presidente da Junta... Existem experiências interessantes, no Restelo, em Telheiras, na Alta de Lisboa, na Mouraria (ex. a associação «Renovar a Mouraria»), mas, de um modo geral, impera o falso «respeitinho», a desconfiança e, sobretudo, a postura de atribuir à CML as culpas por tudo e a responsabilidade por resolver tudo. Como se nós não fossemos cidade e a cidade não fosse a nossa, mas a da Câmara. A Câmara é de Lisboa, mas Lisboa não é da Câmara, é de todos nós (ainda que sejamos cada vez menos, empurrados a viver para as periferias enquanto no centro caem prédios devolutos). Os cidadãos da Ajuda, por ex., toleram que a Capela de Santo Amaro se encontre no estado em que nós mostramos no blogue Lisboa SOS. Ninguém pensa em ir limpar os grafitos que mancham aquele monumento nacional. Ninguém se queixa por a Igreja de São Vicente estar fechada há anos. Perante essa passividade, porque há de o poder reagir? Ser-lhe-á sempre muito mais fácil diluir culpas entre a CML, o IGESPAR, a Igreja... Se os cidadãos forem mais exigentes consigo próprios, serão mais respeitados. O poder é assim porque o deixam ser assim.

E aqui passamos à atitude política:

A CML não pode continuar a alimentar uma cultura política de desprezo pelos cidadãos. Nem julgar que qualquer crítica tem intuitos políticos oposicionistas. A cidadania é algo mais do que a política partidária - e o poder tem de compreender isso. O modo como foram abatidas, nas costas dos cidadãos, cerca de 50 árvores no Príncipe Real é a prova de que a cultura da CML no relacionamento com os lisboetas tem de mudar. Têm-se registado intervenções muito interessantes em espaços públicos - e não nos interessa se foram motivadas pelas eleições, o que nos interessa é verificar que elas ocorreram.

No entanto... (e este é o ponto que interessa)

Lisboa atingiu um nível de degradação absolutamente inusitado. Lisboa poderia ser uma das capitais mais atraentes da Europa, pois alia a História, o património e as tradições a excepcionais condições climatéricas e geográficas: situada na embocadura de um enorme rio, dotada de uma luz singular, próxima de areais de praia com dezenas de quilómetros. Lisboa poderia ser uma cidade em que os cidadãos e os turistas visitariam um monumento manuelino de manhã e mergulhariam no mar do Guincho ou da Caparica à tarde. Que capital mundial tem este duplo privilégio, da História e da Geografia? Cidades há que têm praias, mas não têm igrejas góticas. Outras têm catedrais, mas não têm uma frente ribeirinha como a nossa. O blogue Lisboa SOS desafia qualquer pessoa a indicar-nos uma capital do Mundo que tenha as nossas condições.

E, no entanto, Lisboa está destruída. Irreversivelmente destruída. A Avª Fontes Pereira de Melo ou a Avª da República parecem-se mais com uma capital emergente do Terceiro Mundo do que com uma cidade que tinha belos edifícios oitiocentistas ou Arte Nova. Deixámos que, ao longo de décadas, a cidade fosse capturada por especuladores imobiliários e decisores políticos insensíveis ao valor - até ao valor económico - do património.

O que há a fazer? Infelizmente, apenas minimizar os danos. É inconcebível que ainda se autorizem demolições de edifícios históricos. Em Paris, nas margens do Sena, todos os edifícios estão conservados. Não percebemos que a destruição de um edifício, a perda do comércio tradicional fruto de um licenciamento em massa de grandes superfícies, são fenómenos irreversíveis.

Em termos muito concretos, o que se propõe, no imediato:

1 - aproveitamento dos novos instrumentos legais de reabilitação urbana

2 - investimento no restauro e conservação do património - como está a ser feito em França: a reanimação «keynesiana» da economia, com vista ao fomento do emprego, não tem assentado em novas obras públicas mas em obras de conservação e restauro (ex. Fontainebleau). Os norte-americanos já estão a seguir o exemplo francês.
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3 - política repressiva de actos de vandalismo em larga escala, com destaque para os grafitos, para a destruição de equipamentos. Lisboa está coberta de grafitos. Literalmente coberta, como poucas cidades da Europa. Na Rua Voz do Operário, logo no dia em que acabou a pintura de um edifício, este foi completamente coberto de rabiscos: que estímulo existe para os proprietários? Como a prevenção não funciona, tem de ser aplicada uma política repressiva mais intensa.
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4 - Incremento de «acções locais», a cargo das «brigadas de intervenção rápida» (que nunca foram vistas...) de modo a intervir em permanência em pequenas reparações, limpeza (aos domingos, inclusive), segurança (o belíssimo Parque da Bela Vista está vazio - as pessoas têm medo de o frequentar)

5 - Acções de controlo sobre o espaço público. Por exemplo, na Rua de Santa Marta um terreno expectante (= uma cratera) é usado como parque de estacionamento ilegal. As autoridades não podem permitir que isso aconteça. Como não devem permitir a crescente ocupação do espaço público pela publicidade, como tem sucedido de forma despudorada nos últimos tempos.
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6 - Opção pelo «pequeno» em detrimento de «grandes obras», sem prejuízo da necessidade de arranjos de grande vulto na Baixa ou nos edifícios da Praça da Figueira, por ex. Mas não se compreende que queiram colocar escadas rolantes no acesso ao Castelo (como em tempos se quis colocar um elevador...) em lugar de se limparem pequenas ruas, praças, etc., nos acessos pedonais ao Castelo - e de se aplicarem as sanções devidas aos prevaricadores. É inconcebível pensar-se em escadas rolantes e uma das entrdasa do Castelo estar fechada há anos (quando tem um segurança!). É inconcebível, por ex., que os automóveis possam estacionar no largo fronteiro ao Mosteiro de São Vicente (cuja igreja, para mais, uma das mais monumentais de Lisboa, está fechada há anos, porque caíam bocados do tecto...)
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7 - Despolitização do debate sobre a cidade. Ao mesmo tempo, promoção de um modelo de debate mais aberto e transparente, que não se cinja à hermética linguagem de urbanistas e arquitectos (com o devido respeito).

8 - Percepção da necessidade de uma gestão integrada da Área Metropolitana e, ao mesmo tempo, necessidade de repensar as várias «tutelas» que Lisboa tem (do Estado, da CML,. do Porto de Lisboa, etc.)

A nossa proposta concreta: a CML tem de dizer, no início de cada ano, o que pensa fazer na cidade nesse ano. Através dos mais diversos instruimentos, a CML tem de publicitar que planos existem para a cidade nesse ano, que obras vão ser lançadas, em que estado são as que se encontram em curso. O cumprimento, no início do ano, deste compromisso de transparência seria, em si mesmo, um grande avanço para a cidade. Permitiria aos cidadãos controlarem, de forma mais precisa e fiável, a acção dos poderes públicos. Os «planos estratégicos» ou «cartas» são demasiado vagos e dilatados no tempo para que os cidadãos possam apreciar o que interessa: a sua operatividade. A publicitação de um «programa anual» para Lisboa é um mecanismo essencial para um relacionamento mais saudável entre a CML e os (cada vez menos) habitantes da cidade.

Cumprimentos,

Lisboa SOS

4 comentários:

Paulo Ferrero disse...

Excelente texto com recados excelentes, assim os destinatários os saibam acolher. BOM ANO!
abr.

Carlos Moura-Carvalho disse...

Concordo com praticamente tudo o que escreveram. Mas não posso deixar de relembrar que há menos de 4 meses houve eleições autárquicas em Lisboa e que este texto talvez tivesse sido mais útil na altura.
Por múltiplas razões, mas sobretudo por duas: por ser a "atitude política" mais decente e mais correcta e porque grande parte das propostas do texto eram propostas por Santana Lopes.
Surpreendidos? Pois, mas é verdade.
Mas o horror a Santana faz com que se esqueçam propostas, programas, iniciativas, valores, coerências. Vejam-se os Cidadãos por Lisboa, silenciados com dois lugares de poder.
E o vosso SOS, como tantos outros, calou-se nessa altura e dessa forma, não denunciando o que já é claro há muito tempo, acabou por permitir a manutenção do sistema. Lisboa piorou muito nos últimos anos por culpa da própria Câmara e dos seus responsáveis. Quando não há exemplo, não há confiança.
Gostava de ter visto este texto há uns meses, mas mais vale tarde que nunca. Vejamos se tem consequências.
Bom ano. Que Lisboa melhore.

J A disse...

Acho que este excelentíssimo texto vale por agora....e por mais 5571 meses (no mínimo)!

Luís Alexandre disse...

Bastante realista e oportuno o texto.
As boas idéias para a cidade não têm dono e a capacidade para as gerar não é exclusiva dos políticos (que aliás, são sempre deles as mais estapafúrdias).
A CML poderia começar a recolher e compilar as milhares de idéias que surgem em blogs como este e adaptar os seus planos, não se limitando ao orçamento participativo.
Porque plano de actividades anual já o tem (GOP's, PPI e Actividades Mais Relevantes), pode é abandonar a cultura do betão (em novo) porque para deixar obra feita para a cidade, nem sempre é preciso fazer obra.
Bom Ano