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A igreja em forma de barco desenhada para o Alto do Restelo, em Lisboa, começou esta semana a ser construída. E a polémica ganhou fôlego. Pedimos ao nosso crítico de arquitectura Jorge Figueira que olhasse para a obra de Troufa Real
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A arquitectura volta a suscitar polémica em Lisboa. A igreja da paróquia de S. Francisco Xavier, do arquitecto Troufa Real, é contestada pelas razões habituais: a altura - tem uma torre de cem metros; as cores - dourado, laranja, verde e vermelho; e as formas - o templo que imita uma "caravela num temporal".
Troufa Real faz parte de uma geração de arquitectos que fez da oposição à arquitectura moderna, tida como anódina, a razão de ser dos seus projectos. Quando declara "Sou antimoderno", tenta replicar a obsessão com que outros anteriormente se declararam "modernos". A libertação dos "dogmas" da arquitectura moderna, tal como aconteceu com Pancho Guedes ou Luiz Cunha, passou pela actividade artística. Reivindicar para os arquitectos "a liberdade dos artistas", como escreveu Pancho, significou essencialmente a criação de uma arquitectura libertária, escandalosa e pueril. A Igreja de S. Francisco Xavier é assim, premeditadamente. Entretanto, a arquitectura moderna já não é o que era - quando existia - e, por isso, esta retórica de oposição é algo anacrónica, "anos 80".
Mas é isso uma arquitectura escandalosa - e já estava tudo nas Amoreiras de Tomás Taveira: metáforas ligeiras; cores fortes; grande dimensão. A "imaginação" permite a confluência de temas; a "colagem" é a técnica que os resolve. A sobrecarga de imagens denota um horror ao vazio, que é o sítio do moderno. O confronto com a matriz centro-europeia da arquitectura moderna suscita na Igreja de S. Francisco Xavier o ressurgimento de narrativas imperiais para sul, a evocação dos Descobrimentos, as caravelas. Trata-se de um cruzamento geográfico complexo: chegar a África através de Las Vegas.
A propósito do desenho da torre, segundo o PÚBLICO (20/11/2009), Troufa Real diz já não se reconhecer na referência ao manuelino do projecto apresentado e vai agora inspirar-se no quadro As Tentações de Santo Antão, de Bosch, e em "José Saramago". É importante e enigmático este "José Saramago". Segundo Troufa Real, a nave da igreja imita uma "caravela num temporal, toda dobrada"; a casa do pároco é "uma referência à casa portuguesa do arquitecto Raul Lino"; o centro social "será uma réplica das antigas fortalezas portuguesa"; as cores são uma referência à Índia, para onde S. Francisco de Xavier viajou.
Gaudí em saldos
É interessante notar que este é exactamente o tipo de linguagem dos arquitectos de centros comerciais: a criação de narrativas que permitem desenvolver e "assinar" as formas. O mais escandaloso na igreja, mais do que as cores ou os cem metros, é que é feita com uma linguagem de centro comercial. Troufa Real passa do manuelino para Bosch como, digamos, se pode passar de uma praça de alimentação Velasquez para uma galeria gótica. Tal como qualquer centro comercial que se preze, este é um projecto megalómano: não tem o maior número de lojas da Península Ibérica, mas tem a torre mais alta das redondezas. Parece sofrer de gigantismo. Quer ser iconográfica, mas onde na arquitectura contemporânea a delicadeza da pele e o trato high tech são essenciais a igreja é rudemente pop e inconveniente. Como um centro comercial. Se é um Gaudí, é um Gaudí em saldos; não tanto a Sagrada Família, mas mais uma desenraizada, desengraçada família. Talvez esteja aí, afinal, a sua contemporaneidade.
Porque convém dizer: há edifícios que ontem eram mamarrachos e que hoje são obras-primas. Em 1972, o Diário Popular classificou o "Franjinhas", de Teotónio Pereira e Braula Reis, como um "mamarracho" e lançou uma caça às bruxas. O "Franjinhas" é evidentemente uma obra belíssima da arquitectura portuguesa. Também as Amoreiras iriam destruir a silhueta de Lisboa; não aconteceu tal coisa. O Centro Cultural de Belém arrasaria os Jerónimos; ainda estamos para ver como. Em geral, os verdadeiros mamarrachos passam despercebidos, não geram polémica. A polémica à volta de um edifício significa que não é um mamarracho. Um mamarracho autêntico usa sempre uma face oculta, é mais sub-reptício. Quando se dá por ele, é tarde de mais.
A propósito da polémica, é natural e corajoso que Nuno Teotónio Pereira se tenha referido a este edifício como uma "aberração" (PÚBLICO, 19/11/2009). Na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, Teotónio Pereira, Nuno Portas e Vieira de Almeida conseguiram um requintado equilíbrio, uma quase impossível paz com materiais e sabedoria modernas. Este edifício não vislumbra sequer tal ordem e coerência. Se trocarmos "aberração" por "grotesco", estamos lá.
Deve-se acrescentar ainda que as obras recentes de Troufa Real no Parque das Nações não são felizes. O Edifício Écran é uma estrutura banal com faixas coloridas. Acredita-se que na Igreja de S. Francisco Xavier, sem os compromissos que existem num edifício de habitação, Troufa Real possa estar mais perto do seu antimodernismo.
De resto, esta é uma arquitectura populista que não é popular e, no seu anacronismo, chega em contraciclo. É, várias vezes, politicamente incorrecta. No nosso tempo, a autenticidade e a sustentabilidade são palavras de ordem. A Igreja de S. Francisco Xavier tem pouco de sustentável, como se compreende; e o autêntico escapa-lhe totalmente. O Fórum Cidadania diz até que se trata de um "empreendimento digno de Ceaucescu". Duvido que Ceaucescu entrasse com dinheiro para a construção de um edifício fragmentado como um puzzle irresolúvel, com cornucópias como ondas gigantes, e com um superminarete como torre de uma igreja católica.
A Igreja de S. Francisco Xavier é talvez o fecho de uma geração que teve em Tomás Taveira o expoente máximo. É uma arquitectura escandalosa: cenográfica, narrativa, literal, sem bom gosto. Na prática é uma súmula de faux pas: o dourado; o minarete católico; as cores em força; o neoportuguês suave. Sem elegância, nem subtileza, nem harmonia. Mas também: sem compromissos. Não há nada que se aproveite; e isso é muito atractivo.
(in «Público»).
Troufa Real faz parte de uma geração de arquitectos que fez da oposição à arquitectura moderna, tida como anódina, a razão de ser dos seus projectos. Quando declara "Sou antimoderno", tenta replicar a obsessão com que outros anteriormente se declararam "modernos". A libertação dos "dogmas" da arquitectura moderna, tal como aconteceu com Pancho Guedes ou Luiz Cunha, passou pela actividade artística. Reivindicar para os arquitectos "a liberdade dos artistas", como escreveu Pancho, significou essencialmente a criação de uma arquitectura libertária, escandalosa e pueril. A Igreja de S. Francisco Xavier é assim, premeditadamente. Entretanto, a arquitectura moderna já não é o que era - quando existia - e, por isso, esta retórica de oposição é algo anacrónica, "anos 80".
Mas é isso uma arquitectura escandalosa - e já estava tudo nas Amoreiras de Tomás Taveira: metáforas ligeiras; cores fortes; grande dimensão. A "imaginação" permite a confluência de temas; a "colagem" é a técnica que os resolve. A sobrecarga de imagens denota um horror ao vazio, que é o sítio do moderno. O confronto com a matriz centro-europeia da arquitectura moderna suscita na Igreja de S. Francisco Xavier o ressurgimento de narrativas imperiais para sul, a evocação dos Descobrimentos, as caravelas. Trata-se de um cruzamento geográfico complexo: chegar a África através de Las Vegas.
A propósito do desenho da torre, segundo o PÚBLICO (20/11/2009), Troufa Real diz já não se reconhecer na referência ao manuelino do projecto apresentado e vai agora inspirar-se no quadro As Tentações de Santo Antão, de Bosch, e em "José Saramago". É importante e enigmático este "José Saramago". Segundo Troufa Real, a nave da igreja imita uma "caravela num temporal, toda dobrada"; a casa do pároco é "uma referência à casa portuguesa do arquitecto Raul Lino"; o centro social "será uma réplica das antigas fortalezas portuguesa"; as cores são uma referência à Índia, para onde S. Francisco de Xavier viajou.
Gaudí em saldos
É interessante notar que este é exactamente o tipo de linguagem dos arquitectos de centros comerciais: a criação de narrativas que permitem desenvolver e "assinar" as formas. O mais escandaloso na igreja, mais do que as cores ou os cem metros, é que é feita com uma linguagem de centro comercial. Troufa Real passa do manuelino para Bosch como, digamos, se pode passar de uma praça de alimentação Velasquez para uma galeria gótica. Tal como qualquer centro comercial que se preze, este é um projecto megalómano: não tem o maior número de lojas da Península Ibérica, mas tem a torre mais alta das redondezas. Parece sofrer de gigantismo. Quer ser iconográfica, mas onde na arquitectura contemporânea a delicadeza da pele e o trato high tech são essenciais a igreja é rudemente pop e inconveniente. Como um centro comercial. Se é um Gaudí, é um Gaudí em saldos; não tanto a Sagrada Família, mas mais uma desenraizada, desengraçada família. Talvez esteja aí, afinal, a sua contemporaneidade.
Porque convém dizer: há edifícios que ontem eram mamarrachos e que hoje são obras-primas. Em 1972, o Diário Popular classificou o "Franjinhas", de Teotónio Pereira e Braula Reis, como um "mamarracho" e lançou uma caça às bruxas. O "Franjinhas" é evidentemente uma obra belíssima da arquitectura portuguesa. Também as Amoreiras iriam destruir a silhueta de Lisboa; não aconteceu tal coisa. O Centro Cultural de Belém arrasaria os Jerónimos; ainda estamos para ver como. Em geral, os verdadeiros mamarrachos passam despercebidos, não geram polémica. A polémica à volta de um edifício significa que não é um mamarracho. Um mamarracho autêntico usa sempre uma face oculta, é mais sub-reptício. Quando se dá por ele, é tarde de mais.
A propósito da polémica, é natural e corajoso que Nuno Teotónio Pereira se tenha referido a este edifício como uma "aberração" (PÚBLICO, 19/11/2009). Na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, Teotónio Pereira, Nuno Portas e Vieira de Almeida conseguiram um requintado equilíbrio, uma quase impossível paz com materiais e sabedoria modernas. Este edifício não vislumbra sequer tal ordem e coerência. Se trocarmos "aberração" por "grotesco", estamos lá.
Deve-se acrescentar ainda que as obras recentes de Troufa Real no Parque das Nações não são felizes. O Edifício Écran é uma estrutura banal com faixas coloridas. Acredita-se que na Igreja de S. Francisco Xavier, sem os compromissos que existem num edifício de habitação, Troufa Real possa estar mais perto do seu antimodernismo.
De resto, esta é uma arquitectura populista que não é popular e, no seu anacronismo, chega em contraciclo. É, várias vezes, politicamente incorrecta. No nosso tempo, a autenticidade e a sustentabilidade são palavras de ordem. A Igreja de S. Francisco Xavier tem pouco de sustentável, como se compreende; e o autêntico escapa-lhe totalmente. O Fórum Cidadania diz até que se trata de um "empreendimento digno de Ceaucescu". Duvido que Ceaucescu entrasse com dinheiro para a construção de um edifício fragmentado como um puzzle irresolúvel, com cornucópias como ondas gigantes, e com um superminarete como torre de uma igreja católica.
A Igreja de S. Francisco Xavier é talvez o fecho de uma geração que teve em Tomás Taveira o expoente máximo. É uma arquitectura escandalosa: cenográfica, narrativa, literal, sem bom gosto. Na prática é uma súmula de faux pas: o dourado; o minarete católico; as cores em força; o neoportuguês suave. Sem elegância, nem subtileza, nem harmonia. Mas também: sem compromissos. Não há nada que se aproveite; e isso é muito atractivo.
(in «Público»).
4 comentários:
Pode-se não gostar dos volumes; pode-se não gostar das cores; mas será tudo perdoado se houver QUALIDADE; isso é que dá valor à obra.
Não vejo discussão sobre QUALIDADE.
Agora preocupa-me mais que o Dono de Obra só tenha 1/3 do dinheiro necessário para fazer a obra e comece já a construção!!!
Vamos ter uma estrutura inacabada durante anos.
Eu sei que é tradição "de Santa Engrácia", mas como lisboeta não quero mais disso.
No resto a provocação é até muito saudável. Houvesse dinheiro para a realizar...
Daria um bom trabalho para a série "Ruin'Arte"...estou mortinho para a ver em ruínas...
"Fecho de uma geração" de mau gosto, pirosa e kitsch? Óptimo. Mas não sem antes nos presentear (e presentear Lisboa) com mais um excremento pós-moderno que, actualmente, nem moderno nem pós... Será mais um para juntar aos nossos tesourinhos deprimentes como, por exemplo, o edifício das "guitarras portuguesas" (CGD), da traça de Tomás Taveira, a estripar a Av. de Berna.
Verifica-se o aumento da qualidade arquitectónica da freguesia do Cacém em relação ao Restelo.
Quanto desvalorizará a habitação de uma pessoa que abra a janela e "tenha" que ver isto todos os dias?
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