sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Ainda o caso da bandeira.

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A «silly season» tem sido animada pelo «caso da bandeira». De acordo com os relatos da comunicação social, que parecem ser confirmadas pelas imagens divulgadas em alguns «blogues», com destaque para o «31 da Armada», um indivíduo não identificado, agindo concertadamente com outros, escalou a varanda da fachada do edifício-sede da Câmara Municipal de Lisboa, na Praça do Município, e arreou a bandeira da Câmara Municipal de Lisboa, hasteando, em seu lugar, uma bandeira azul e branca, correspondente na sua simbologia e heráldica àquela que era utilizada como símbolo nacional durante o período da Monarquia.
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O caso já foi analisado sumariamente neste blogue. Mas a ele regressamos, para dizer o seguinte:
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1 - O ESSENCIAL
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(a) - os factos que são do conhecimento público revelam que foram cometidos, aparentemente, um crime de furto simples, p. e p. no artigo 203º do Código Penal, possivelmente em concurso com um crime de furto qualificado, p. e p. no artigo 204º, nº 1, alínea f), do mesmo Código [ou no nº 2, alíneas d) ou e)], bem como um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. no artigo 191º do Código Penal. Não é de excluir que haja sido igualmente cometido o crime p. e p. no artigo 298º do Código Penal (Apologia pública de um crime).
(b) - ao contrário do que tem sido noticiado, não foi praticado qualquer crime de ultraje aos símbolos nacionais e regionais, p. e p. no artigo 332º do Código Penal, porquanto a bandeira municipal não é um símbolo nacional ou regional, não sendo possível proceder, por imperativos constitucionais, à aplicação analógica de normas penais.
(c) - as afirmações produzidas em (a) e (b) baseiam-se exclusivamente nos relatos feitos pela comunicação social, e que são do conhecimento público, não configurando a imputação a outrem da prática efectiva de crimes, cabendo o apuramento da responsabilidade criminal às autoridades competentes.
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2 - O ACESSÓRIO
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O que foi dito anteriormente é o essencial. Corresponde a uma descrição dos factos e ao seu enquadramento jurídico. Tudo o mais que se afirme corresponde a uma tentativa de «lateralizar» o debate para aspectos que nada têm a ver com o fulcro da questão:
(a) - em causa não está a discussão sobre Monarquia ou República. O que está em causa é um acto que, aparentemente, possui contornos jurídico-criminais. Isto nada tem a ver com sermos monárquicos ou republicanos. Desviar as atenções para esse debate, como tem sucedido na comunicação social, acaba por corresponder aos objectivos políticos de quem praticou um acto que à partida se afigura como criminoso. Se o debate sobre Monarquia ou a República passar por aqui, isto significa que estão ambas muito mal, quer uma, quer outra.
(b) - poderá estar em causa, noutra sede, a prática de ilícitos disciplinares, omissões de cuidado de funcionários, responsabilidades políticas dos autarcas, falta de diligência das autoridades policiais, etc. Mas, no essencial, o caso resume-se a isto: um indivíduo, concertado com outros, entrou num edifício público, por escalamento, e apropriou-se de um bem alheio.
(c) - é extraordinário verificar como, devido à ignorância extrema de jornalistas, «fazedores de opinião», etc., um grupo consegue fazer desviar as atenções do essencial. Mais: um grupo consegue, após a prática de actos aparentemente do foro criminal, continuar a fazer troça das autoridades, propondo uma troca de bandeiras, para depois abandonar essa ideia e fazer a entrega da bandeira da CML, «lavada e engomada no 5àSec».
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Tudo isto suscita uma séria reflexão sobre o problema da autoridade - ou da falta dela. Se se tratasse de um grupo anarquista de extrema-esquerda, o que diriam os que agora apoiam esta «acção»? Não percebem que, até para defesa da causa da Monarquia, omitir que houve a prática de um crime é altamente negativo? Defendem um regime em que um indivíduo possa furtar a bandeira hasteada na sede da edilidade da capital de Portugal? Não percebem que é esta erosão da autoridade democrática e legítima que favorece o tráfico de droga em pleno dia ou a proliferação de «tag's» e «graffitis»? Compreende-se que, à primeira vista, alguns monárquicos sintam um certo «gozo» pelo que foi feito. Mas é preciso que, ultrapassada essa primeira sensação de regozijo, pensem bem no significado que tudo isto tem.
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Dir-se-á que estamos a dar um relevo inusitado a este caso. E, desse modo, a fazer também o «jogo» dos autores desta iniciativa. Estes, no entanto, já se mostram algo receosos:
1 - começaram a falar, novamente gozando, que queriam uma troca de bandeiras, na Praça do Município, entre «Darth Vader's» e elementos da PSP. Mas acabaram por ir aos Paços do Concelho, respeitosamente, entregando a bandeira furtada a um funcionário autárquico e a dois polícias de serviço.
2 - Uma das personalidades que se evidenciou neste caso, Rodrigo Moita de Deus, começou a dizer que era «um disparate» abrir um processo, gastar o dinheiro dos contribuintes com isto, etc. Então, em que ficamos? Foi um gesto corajoso e nobre, de quem defende e se sacrifica pelos seus ideais, sejam quais forem as consequências? Ou, afinal, foi uma brincadeira de miúdos, deixem lá estar, a gente devolve a bandeira, não nos metam um processo? Repare-se: estamos a falar de pessoas que não são inimputáveis: os alegados autores do acto desempenham ou desempenharam funções de responsabilidade (Henrique Burnay foi assessor da Ministra da Justiça, Celeste Cardona, e é actual assessor do grupo parlamentar do CDS, em Bruxelas; Rodrigo Moita de Deus, militante do PSD há dez anos, foi assessor de Leonor Beleza quando esta era vice-presidente da Assembleia da República). Se dissermos que isto é uma brincadeira de miúdos, também o serão os grafittis anarquistas e anticlericais que se fazem nas igrejas de Lisboa. Se são miúdos, não os contratem como assessores. Bem, Rodrigo Moita de Deus não é propriamente um miúdo. Tem 31 anos. Aos 31 anos, o 31 da Armada meteu-se num 31 de esquadra...
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Poderemos discutir se vivemos bem ou mal em República. Mas, pelo menos, não restam dúvidas de que vivemos num país que é democrático e em que existem leis para cumprir. O direito de manifestação tem de se exercer no quadro do cumprimento da legalidade - em particular, da legalidade penal. Não defendemos que ao simbolismo do gesto corresponda uma pena também simbólica na sua severidade ou «exemplaridade». Mas achamos que as atenções, neste caso como noutros, estão a ser desviadas do essencial. Concentremo-nos no essencial: os dois bloggers do 31 da Armada já prestaram declarações na Polícia Judiciária. Que o processo continue, que isto deixe de ser notícia. Deste caso, só queremos notícia quando soubermos o que aconteceu aos autores deste acto e aos que, por negligência, permitiram que o mesmo tivesse lugar.
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Post-scriptum - o CDS-PP anda a colocar uns «outdoors» populistas, demagógicos e enganadores a perguntar se achamos bem que os criminosos tenham mais direitos do que os polícias. Henrique Burnay é militante e assessor do CDS-PP. Vai ter, ao menos, alguma sanção disciplinar no partido? Se foi ele quem praticou o crime, Henrique Burnay não pode ter mais direitos do os polícios que o interrogaram. É assim, ou não é?

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