segunda-feira, 27 de julho de 2009

A não perder.



Em dez carros, quatro estacionam com as rodas no passeio e não são multados.
Saio de casa. A EMEL desembarcou na rua com carrinhas e mancebos fardados que bloqueiam os carros. Estou descansada porque tenho o dístico de residente. Ando em Lisboa a pé, de metro ou de táxi. Lembro-me de que o carro precisa de carregar a bateria. Os carros que têm senha e estão estacionados com as rodas em cima do passeio, apesar do espaço suficiente, nunca são multados.
Em dez carros, quatro estacionam com as rodas no passeio. Deve ser o hábito. Atravesso o jardim. Está pelado e com um parque infantil decrépito. Os sucessivos presidentes encheram-no de bustos, esculturas e lápides medonhas. Em volta, os passeios estão sujos, com lixo, cabelos e dejectos caninos. Quando há "eventos" nos museus ou na igreja do jardim, o jardim fica atulhado de carros.
A boa notícia é que o velho quiosque foi recuperado e vai ser reaberto, com uma esplanada decente. Pintado de fresco, aguarda. Regresso a correr porque me telefonam a dizer que o carro vai ser rebocado. Não pode ser, sou residente. Um amigo que trabalha na zona fez o favor de esportular 80 euros para impedir que a EMEL rebocasse o carro. O dístico estava fora de prazo, por uns dias. Esqueci-me de o revalidar.
Dantes, a Polícia deixava um aviso no pára-brisas. E a EMEL também. Coloco senhas do parquímetro. Lembro-me que a EMEL presta um serviço público e deve agir no interesse público. E que a EMEL é inconstitucional. À noite, metade dos carros da rua ficará impossibilitada de sair. Cortesia dos clientes dos restaurantes e da discoteca. Carros em fila dupla e tripla durante horas, carros com piscas ligados, carros em cima do passeio. Antes da meia-noite ninguém sai. Não se vê um polícia. Nem os zelosos fiscais da EMEL.
O condomínio privado gigantesco que nasce num dos lados da rua terá garagens. Os condomínios privados estão isentos destas maçadas, por isso são privados, com ruas e garagens e seguranças e jardins privados.
No meio de Lisboa. Vejo dois jovens da EMEL entretidos a despejar um parquímetro de moedas e interpelo-os, dizendo que não têm o direito de perseguir os moradores, sabendo como sabem, pelo hábito, quais os carros dos moradores. Os avisos servem para avisar. Eles encolhem os ombros e continuam a recolher as moedas do jackpot.
Duas senhoras de idade dirigem-se a mim e apoiam a queixa. Uma delas tinha o carro parado há muito tempo, quase nunca o usa, e foi rebocado pelas mesmas razões. Agora tem de o ir buscar, pagar o táxi, e pagar a multa e o reboque. 80 euros é uma fortuna, é reformada, antiga professora de liceu. Vive só e o dinheiro escasseia. Diz que odeia a Câmara e que não irá votar. Está quase a chorar de raiva.
Vou à EMEL. Voltou a mudar de sítio. Tenho acompanhado estas mudanças de residência da empresa. De Entrecampos para a Baixa e da Baixa para a Pinheiro Chagas. Não exigem tanta papelada e certificados de residência como dantes, tinha que pedi-los na Junta de Freguesia, que se fazia cara. Basta a carteira ou o cartão. E os documentos do carro com a morada. E o dístico anterior. O cenário é frugal. Uma televisão ligada na RTP, um segurança, meia dúzia de cadeiras e secretárias com a maquineta do Multibanco à vista. Dinheiro ou cartão? É rápido. O dístico aumentou para o dobro. E o pedido também. Aumentou tudo. Para o dobro. Ontem. Porquê? Porque sim.
Começo a compreender a invasão da EMEL na rua. Preços novos. Dinheiro fresco. Querem o dístico antigo. Não consegui descolá-lo. Prescindem. A professora reformada chega quando estou a sair. Não falo do aumento. Tenho medo que ela tenha um ataque. Regresso a casa. Observo a rua. Muito trânsito, muita gente de passagem. Mais do que noutras ruas porque é uma rua movimentada, com escritórios e residências e com edifícios públicos (medonhos) e particulares. Com lojas e restaurantes.
Os passeios estão encardidos porque a rua nunca é lavada. O lixo esvoaça. Há sempre lixo, muito lixo. Apesar do movimento, a limpeza é assegurada como se fosse uma rua deserta. É insuficiente. É uma batalha perdida, a da sujidade. Os caixotes regurgitam e os contentores da reciclagem também.
A reciclagem é uma montanha de lixo no passeio. Até colchões lá deixam. Os contentores, tal como a limpeza, são insuficientes. De vez em quando aparecem baratas. O colector principal está partido há anos e nunca foi consertado (disse, há anos, uma brigada dos esgotos). As ervas daninhas foram cortadas, uma barba espessa que cobre os passeios e cresce com as chuvas. As ervas cortadas não foram limpas e espalham-se pela rua, pisadas. Virá um varredor. Insuficiente. Ninguém ouviu falar de aspiradores? No jardim, o quiosque foi vandalizado com graffiti. Antes de abrir.
A crónica de Clara Ferreira Alves no último número do suplemento «Única» (do «Expresso»).

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