quinta-feira, 9 de abril de 2009

Uma carta da Graça.

Enviada para os jornais, por um leitor amigo, aqui a reproduzimos:
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Caro Sr. Director
escrevo-lhe desta longínqua satrapia da Graça para lhe dar algumas notícias a que as agências noticiosas nem sempre terão acesso.
Corre aqui pela nossa satrapia que o Convento das Mónicas foi vendido para se tornar num hotel de charme. (Mas não temos creches). Dizem aqui na Graça que a Escola de Santa Clara, no antigo Convento de Sta Clara deverá também ser transformado em hotel de charme (Mas não há creches). E diz-se que até o quartel da GNR, instalado no antigo Convento da Graça poderá vir a ser um hotel de charme. Entretanto, os pais de 50 crianças enfrentam o problema de encontrar uma creche para os filhos, que estão em risco de em Julho se verem definitivamente desalojados da creche que (ainda) frequentam, pois a Legislação Europeia, que preside à Segurança Social Nacional, assim o determinou. Segundo essa Legislação, a creche provisoriamente instalada nos claustros do antigo Convento da Graça não obedece aos requisitos exigidos para as creches europeias. Quis o acaso que nessa creche se reunisse uma equipa excepcional de educadoras, que tornou modelar esta escolinha. As condições de segurança e higiene são, na opinião dos pais, quase ideais. Há uma hortazinha e um jardim, espaço arejado e luminoso. Mas não há os requisitos europeus. Dizem-nos que estamos na Europa e as nossas creches não podem ficar atrás das creches da Roménia, da Letónia, da Eslovénia, da Alemanha e todas as outras.
Por acaso a creche da Graça está instalada no Convento da Graça provisoriamente só porque a sede de que dispunha (com muito espaço e luz) reunia todas as condições para uma creche, mas não satisfazia os requisitos da Legislação Europeia da Segurança Social num ponto: os acessos. O acesso é por uma rua com uma inclinação que não respeita os requisitos. A Graça fica numa colina e as ruas têm quase todas uma certa inclinação pouco europeia. Os bombeiros da Graça no parecer que deram diziam que a eficácia do equipamento de que dispõem em nada é diminuído pela tal inclinação. Se assim não fosse, dizem os bombeiros, mal iria para o charme das sete colinas da nossa capital. A Câmara, ao que dizem, estaria disposta a atenuar o declive da rua, de modo a torná-la conforme com as normas de acessibilidade. De nada valeu: a Legislação Europeia não quer creches com acessos em declive, ponto final. E assim ficamos sem creche à vista. Mas com vários hotéis de charme no cardápio.
Aproxima-se o mês em que teremos os olhos e os ouvidos do rei distribuidos pelas satrapias do reino a espalhar promessas e muito charme. Todos dirão que estão empenhados no “apoio ao alargamento da rede de educação pré-escolar”. Todos se mostrarão atentos e “preocupados com os problemas fundamentais da população mais carenciada”. Mas estes pais que não sabem para onde se virar, porque as creches da zona já não têm lugar, mas as 12 pessoas que trabalham na creche e que a partir de Julho estarão provavelmente no desemprego (para algumas delas, provavelmente definitivo), gostariam de contar com menos charme e com mais creches. Contar com esta creche, para começar (que já existe, que funciona e que, com mais largueza de espírito e compreensão daquilo que o jargão de Bruxelas designa por “princípio da subsidiaridade na aplicação da regulamentação europeia”, poderia preencher os requisitos mínimos da tal legislação).
Há muita gente aqui na satrapia da Graça que, de cansada, começa a pensar seriamente em emigrar para a capital. Aí, talvez levem mais a sério o tal “objectivo de adequação da oferta global de educação pré-escolar” Aí talvez o “notável empenho por parte dos municípios e das instituições particulares de solidariedade social” tenha conseguido “colmatar” os tais “alguns constrangimentos”, que ainda nos separam da Europa e com que se debatem as satrapias mais periféricas do império.


José Lima
Largo de Santa Marinha, 26 - 2º
1100-489 Lisboa

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