sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

No tempo dos marceneiros.


Ilustração de uma marcenaria na Alemanha, 1568
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Marcenaria na Rua do Norte, n.º 61.
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Os marceneiros já quase desapareceram do Bairro Alto. O bairro era conhecido pelas suas casas de antiguidades e decoração onde se adquiriam peças de mobiliário antigo que depois eram ali mesmo restauradas pelos artesãos que mantinham o ofício. Havia muitos, hoje não há quase nenhuns. Foi no tempo do restaurante “A Baiuca”, na Rua da Barroca, onde a Júlia mandava na cozinha e se reuniam os nomes da moda e os nomes de uma Lisboa diferente que começava a aparecer. As casas típicas de fado e do folclore dominavam a noite. Era tímida a presença de estranhos no bairro. O Pedro Guimarães tinha loja na Travessa da Queimada no n.º 48. Entretanto, partiu para o Porto e a casa foi adquirida pelo António Castro, que nela abriu a galeria de arte "Leo", a qual foi inaugurada com uma controversa exposição do pintor Mário Botas. Do outro lado da rua, o Manuel Reis vendia, numa pequena loja, peças escolhidas com o seu bom gosto no estrangeiro. Mais tarde, tomaria conta do Bairro, até se ter mudado para a beira-rio. Enquanto por cá andou, abriu a "Loja da Atalaia" e o "Frágil" com decoração do Pedro Cabrita Reis, com uma enorme hélice, um grande espelho e bancos altos, onde tantas noites se sentou a Manuela Gonçaves, a dona da "Loja Branca", na Praça das Flores. Tantos foram os nomes, hoje esquecidos, que fizeram a história deste bairro nos anos 70, 80 e 90. Durante o dia, passeávamos pela Rua do Carmo, onde Ana Salazar tinha a "Maçã", que vendia roupa adquirida em Londres e que a maioria achava "extravagante". A "Brasileira do Chiado" tinha mais fumos e drogas do que intelectuais e artistas. Na "Leitaria Garrett" e na "Camponesa" reuniam-se alguns músicos e baladeiros da revolução. Passávamos as tardes no "Imperium", junto às escadinhas do ascensor de Santa Justa, onde o Dino e o Rodolfo tomavam um chá, num ambiente que lembrava os filmes de Fellini que víamos no Quarteto. Bebia-se chocolate quente na "Ferrari". Chegou a aparecer lá, com um burro, o maestro Victorino d`Almeida, antes de a "Ferrari" ter sido devastada pelas chamas do incêndio do Chiado. Existia ainda a Pastelaria Marques. A Luísa vivia numas águas furtadas no Largo Luís de Camões. Mais tarde, foi para a Suíça e voltou fotógrafa. Era no Chiado, como já tinha sido no século XIX, que o "glamour" se exibia nos dândis e excêntricos da cidade. À noite, era no Bairro Alto onde tudo terminava. Jantava-se na Baiuca ou no Bota Alta. Mais tarde, apareceu o Pap'Açorda onde o Zé Miranda e o Fernando Fernandes recebiam mais amigos que clientes. Depois havia o “Sr. António”, na Rua Diário de Noticias, nome de uma taberna exígua, com serradura espalhada pelo chão, onde se bebia amêndoa amarga. Ficava em frente ao "Jukebox", do Eduardo e da Zita, conhecido dos "góticos" pelas suas matinés, e que mais tarde daria lugar ao "Tertúlia Bar". Existia também o “Arroz Doce” da D. Alice, comadre do Alfredo, segurança do "Frágil", onde ficaram célebres os “Pontapés na ...”. Para os de maior fôlego, as noites acabavam no "Harrys Bar" da Joaninha a comer um caldo-verde e a ouvir o Ary dos Santos a declamar ou no "Galo", junto à entrada do Parque Mayer. A "Lontra", o "Jamaica" e o "Texas Bar" tornar-se-iam moda só uns anos mais tarde. No tempo dos marceneiros, o Bairro Alto era das putas e dos jornais. Aqui se imprimia a Bola, o Record, a Capital, o Diário de Lisboa, o Diário Popular. As rotativas embalavam as noites. Hoje já cá não há nada disso. Há outras coisas.
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