terça-feira, 30 de setembro de 2008

Fomos visitar Baptista (hífen) Bastos.


O nome de Armando Baptista-Bastos anda na boca de toda a gente. Primeiro, foi a discussão, nos idos anos oitenta, sobre o hífen do apelido. Afinal, era Baptista-Bastos com hífen ou Baptista Bastos sem hífen? Depois, em meados da década de noventa, incomodaram esta veneranda figura das letras nacionais com a questão: era Baptista com «p» ou Batista sem «p»? Graças à publicação do utilíssimo Dicionário da Academia, as controvérsias pretéritas ficaram encerradas. É Baptista-Bastos («B.B.», para os íntimos) . Com hífen, com p, com tudo. O hífen mais famoso das letras nacionais, após Bessa-Luís, Agustina, essa representante da alta burguesia da capital do Norte. E já agora: onde estaria o B.B. no 25 de Abril?



Lisboa SOS está em condições de responder: era aqui, neste modesto tugúrio ao Alto da Ajuda que Baptista-Bastos se acobertava, clandestino, na Longa Noite Fascista. Aqui o encontrou Abril, na madrugada luminosa de Sophia. No ano da Revolução, Baptista publicou Cão Velho Entre Flores, o que, para título de obra literária, não está nada mal enquanto contributo para uma semiótica do foleirismo galaico-português. Bem, pouco haveria a esperar de um homem dos jornais que antes havia dado à estampa O Filme e o Realismo (1962) O Secreto Adeus (1963) O Passo da Serpente (1965) O Cinema na Polémica do Tempo (1969) A Palavras dos Outros (1969) e Cidade Diária (1972).

Agora, voltou a ouvir falar-se do nome do autor de No Interior da Tua Ausência (2002). Dizem que recebeu uma casa de favor vinda do património disperso da Câmara Municipal de Lisboa. Acabrunhado pela soez atoarda, Baptista perdeu a «panache» de outrora. Já nem o «papillon» lhe assenta com o garbo mavioso d'outras eras. Bastos contra mundum. Pegou na sua «patroa», a Srª. Dª. Palmira Bastos, e regressou ao seu refúgio na Ajuda. Como nos tempos das salazaristas trevas. Aí foram concebidas obras que só veriam a luz do dia muitos anos depois, como Lisboa Contada pelos Dedos (2001) e a narrativa autobiográfica Uma Casa à Conta Dá Sempre Jeito (2003). Segundo o seu maior biógrafo, Abel Barros-Baptista-Barros, foi também neste humilde casebre que Bapista-Bastos urdiu a trama romanesca de obras imorredouras, como a colectânea de crónicas Deixa Lá Estar o Povo, Palmira, que o Povo Mora Bem Onde Mora (1997).


Baptista recebe-nos melancólico. O seu jardim privado é um universo de recordações. O automóvel vermelho que o levou au bout de la nuit, em masculinas boémias de uma Lisboa obscena. O berço onde alimentou a criança e o sonho de uma manhã de Abril, na promessa incumprida de igualdade e justiça para todos.



Cão Velho Entre Flores, de 1974. Uma das suas obras mais conhecidas. «É assim que me sinto agora, rapazes...», confessou-nos, pesaroso.



Mantendo a sua voz potente e cava, Baptista-Bastos serve-nos de cicerone aos lugares de velhas reminiscências. «Vêem, jovens, naquela cadeira escrevinhei vastas páginas do Elegia para um Caixão Vazio. É livro de que me orgulho». Grande Baptista, Mestre Baptista, que, como o do toureio, no galanteio marialva nunca te deixaste conduzir por mãos alheias.




Mas quem deste carro cuidaria se não fosses tu, Baptista, mãos calejadas do chumbo das letras, pena na mão contra a miséria e a injustiça? Sim, Bastos, tu o mereces. A casa é tua. Lisboa te a deve.




O carrito telecomandado, não leves a mal, mas está-nos a parecer uma pueril cedência à sociedade capitalista de consumo. Falando em cedência: cederam-te a casa? Dize lá, Baptista.



Rádio-amador, Baptista?! Uma antena, Armando?! Com quem falarás tu? Com a Rádio Tirana, Albânia? Ou com os Serviços de Apoio Domiciliário da CML?



C'os diabos, isto está pior que a tua reputação.



Um Homem Parado no Inverno (1991). É como te sentes, decerto. A invernia aproxima-se. E tu, acossado pelos jornais - os jornais que tanto amaste! -, aqui estás. Ao Alto da Ajuda.



A Wikipedia, essa criação mercantilista, informa-nos que o primeiro prémio que recebeste foi, em 1987, o Prémio Literário Município de Lisboa. Mas antes não tinhas já sido premiado pela edilidade? Agora, dizem que sim. E, falando à imprensa, tu não o negas. Apenas omites alguns detalhes. Mas o Povo, Baptista, o Povo gostava de saber mais. O povo sem hífen nem prémios, B.B. Compreendes?

A Cara da Gente (2008) é o mais recente produto do volumoso caudal criativo deste homem de letras. A Cara da Gente? A gente, a gente que trabalha & sofre, ficou de cara à banda quando soube que este Homem de Abril havia recebido uma casita da CML.



É hora de despedida... Concluir pela esquerda baixa uma obra literária desta envergadura é tão triste, mas tão triste, Baptista. As palavras são mesmo estas: pela esquerda baixa.



Pior que saber que recebeste uma casa é a revelação que guardámos para último: não, não é a aguardente de medronho ou a bagaceira «Prata do Minho» que fazem a tonitruante garganta de Baptista-Bastos. O nosso Armando, vergonha das vergonhas, é danadinho pela Coca-Cola. Não, não vamos explorar sadicamente a ladainha da «água suja do imperialismo»... O Baptista já está suficientemente combalido.

A tarde cai. É tempo de deixarmos Armando Baptista-Bastos na sua moradia unifamiliar. Sempre cavalheiro, Armando vem ao portão para a despedida. Vá para dentro, Sr. Armando, não se incomode. É mais um ou dois dias e essa cáfila dos jornalistas não fala mais disto. Uma cáfila, Armando b.b., uma cáfila.

Quem realmente mora aqui, Baptista, nestes barracões do Alto da Ajuda, tem o DIREITO de saber porque é que tu moras onde moras. O direito de perguntar e o direito de saber. O direito de que o poder esclareça como administra bens que são de todos. O direito de saber, da Câmara Municipal de Lisboa, qual o número de casas que disponibilizou, a vários títulos, nos últimos 30 anos, e a quem o fez. Foi o 25 de Abril - lembras-te, ó Baptista? - que lhe concedeu esse DIREITO. E já agora, Baptista: onde é que tu estavas no 25 de Abril?

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