segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A desoras.





Património

Relógios públicos de Lisboa andam ao deus-dará
Mais de metade dos relógios públicos antigos de Lisboa estão parados. Quem o diz é o investigador do tempo Fernando Correia de Oliveira, que atribui o abandono a que muitas destas peças históricas estão votadas à relação "doentia" que os portugueses têm com o tempo. Por Ana Henriques (texto)

Fernando Correia de Oliveira, investigador da história do tempo e da relojoaria, aponta o mecanismo da Torre do Galo, na Ajuda, como um exemplo do abandono a que estão votados os relógios públicos antigos de Lisboa. Pormenor: a torre barroca encimada por um catavento em forma de galo fica a uma escassa centena de metros do Palácio da Ajuda, sede do Instituto do Património Arquitectónico e Arqueológico (Igespar) e do Ministério da Cultura. Visto de fora, o edifício de pedra com mostradores em todas as faces parece simplesmente por recuperar.

O especialista explica no entanto que, no interior da torre, o mecanismo de ferro do relógio está ligado a um complexo sistema de carrilhões assente em estrados de madeira que podem desmoronar-se a qualquer momento, até porque houve aqui um incêndio há algumas décadas. Trata-se de um dos exemplares mais interessantes da relojoaria grossa nacional, observa, fabricado por um exímio mestre relojoeiro do Convento de Mafra no séc. XVIII, José da Silva. Fazia parte da Real Barraca, as instalações em madeira que D. José mandou fazer depois de o terramoto de 1755 o ter feito fugir da zona do Terreiro do Paço. O estado a que chegou "é chocante", diz Fernando Correia de Oliveira.

Igualmente preocupante é a situação dos relógios públicos existentes nos hospitais do centro de Lisboa que irão ser desmantelados. O desconhecimento do seu valor pode ditar a destruição. O especialista fala de um pequeno carrilhão ao abandono no Hospital de S. José, que não está sequer à vista, e num relógio com sino numa torre num pátio no Hospital dos Capuchos: "Este património desconhecido pode ir todo parar ao lixo." Outro perdeu-se para sempre, como os relógios florais da rotunda do aeroporto. "Um dizia "bem vindo" e outro "boa viagem". Foi tudo destruído."

"Há uma insensibilidade e um desprezo quase total dos poderes públicos perante estas questões", descreve. O facto de os técnicos do património terem uma formação habitualmente ligada apenas à história da arte pode ajudar a explicar o desinteresse. "Toda a Europa estima os seus relógios; são considerados património colectivo." Mesmo mostradores de madeira pintada existentes em países com climas bem mais rigorosos que o português, como a Alemanha, são mantidos em condições, prossegue. A que se deve a atitude nacional? "É o nosso desmazelo e a nossa má relação com o tempo exacto, a que não damos valor." Mesmo instituições que dantes mantinham as suas máquinas a funcionar de forma irrepreensível, como os Correios, já não têm o mesmo cuidado. Que o diga o relógio da estação da Praça D. Luís, junto ao mercado da Ribeira. O mostrador amarelado e os ponteiros parados no tempo desfiguram a solenidade do torreão em que mora desde os anos 50. Não está sozinho no seu infortúnio: no vizinho Largo de S. Paulo, um dos mostradores da igreja já nem ponteiros tem.

A CP é das poucas entidades que continuam a manter bons padrões de funcionamento, nota Fernando Correia de Oliveira. Por vezes, os mecanismos foram retirados dos seus lugares originais e colocados nos núcleos museológicos que a empresa tem espalhados pelo país. A Fundação Portuguesa das Comunicações podia fazer algo de semelhante com o espólio dos antigos CTT, Marconi e TLP que tem armazenado, sugere. Em vez de o ter depositado nos armazéns, longe da vista do público, poderia aproveitar os diferentes relógios que tem para criar um núcleo museológico do tempo.

Um pouco adiante, o fracasso do restauro do relógio do Arco da Rua Augusta é exemplar de como, mesmo havendo um mecenas, um processo que tinha quase tudo para correr bem pode emperrar. O relógio do arco marca agora a hora certa. Por quanto tempo? É impossível saber. Ainda há cinco dias estava parado. As oscilações de humor duram-lhe desde 2007, altura em que a Torres Joalheiros empreendeu uma missão de mecenato com a marca de alta relojoaria Jaeger-LeCoultre para financiar o restauro desta e doutras peças notáveis de Lisboa há muito adormecidas. A reentrada em funcionamento de um mecanismo que se encontrava parado há anos foi feita numa cerimónia que contou com a presença da ministra da Cultura e de vários outros responsáveis pelo património - o que não impediu que, escassos dias mais tarde, o mostrador já registasse um atraso de dez minutos. Mais de três anos e de 36 mil euros depois, valor da verba paga pelos mecenas, o problema não está resolvido. O mestre relojoeiro que consertou o maquinismo - produzido pelo seu avô no final da década de 1930 para substituir o original, que tinha deficiências de funcionamento - chegou a queixar-se de que o Igespar nem sempre lhe facultava a chave que lhe permitia aceder ao arco para fazer a manutenção regular do aparelho. Em relógios mecânicos, como é o caso, e ainda por cima numa zona de alguma humidade por causa da proximidade do rio, os pequenos acertos periódicos feitos pelo relojoeiro são indispensáveis. O peso dos ponteiros de um sistema desta dimensão também contribui para os desacertos. A estes desentendimentos somaram-se os danos provocados pelas obras que o Estado resolveu a seguir fazer no edifício, com o intuito de o abrir de forma permanente ao público - o que, apesar de estar previsto no protocolo com a Torres, nunca sucedeu até hoje. "O relógio ficou num estado deplorável por causa da poeira resultante da limpeza da pedra", recorda Paulo Costa Dias, da empresa benemérita. Seguiu-se nova reparação. A Torres disponibilizou-se para patrocinar o restauro de mais dois relógios monumentais, o da Sé e o do Mosteiro de S. Vicente de Fora. "Mas sentimo-nos menos motivados depois do falhanço da Rua Augusta", admite o mesmo responsável, que continua à espera que o relógio volte a trabalhar em condições para avançar para mais mecenatos.

Talvez não seja fácil. "Este relógio nunca funcionou bem", diz Fernando Correia de Oliveira. E revela um segredo bem guardado: durante a II Guerra o relógio foi munido com um sistema de sirenes, que avisariam os habitantes caso Lisboa viesse a ser bombardeada.

Paulo Costa Dias diz que os problemas estruturais do edifício da Sé são outro obstáculo ao restauro daquele que é o primeiro relógio público de Lisboa, e que está igualmente parado. Com um único ponteiro, o das horas, não era máquina de grande precisão, mas na Idade Média isso também não tinha grande importância. Inicialmente nem sequer tinha mostrador. "Não era para mostrar as horas, era para as bater, com os sinos", explica Fernando Correia de Oliveira. Era através dele que mouros e judeus sabiam que era altura de recolherem aos seus bairros, cujas portas se fechavam às 18h para só reabrirem às 7h do dia seguinte. O investigador chama a atenção para um pequeno quadrado que está a meio da torre da Sé. Passa quase despercebido, até porque a numeração já se encontra apagada, mas é um relógio de sol. Era por ele que na Sé se acertava o mecanismo dos carrilhões.

E quem quiser saber as horas mesmo certinhas é ir ao Cais do Sodré. Na esquina das agências europeias, o relógio da hora legal transmite o tempo oficial emitido pela única entidade habilitada para o fazer - o Observatório Astronómico da Ajuda (através de um "diálogo" entre computadores, um instalado na Tapada da Ajuda, outro na guarita do Cais do Sodré). "Ao fim de muitos anos e também de muitas peripécias, parece que finalmente o relógio está a servir para o que foi criado. É só pena não ter ponteiro dos segundos", diz Fernando Correia de Oliveira.

O PÚBLICO tentou obter junto de diversas entidades explicações para a existência de tantos relógios mortos cidade fora. Os Correios de Portugal dizem que não há nada a fazer no caso da Praça D. Luís. "O relógio está avariado e não tem arranjo.Há dois anos que sabemos isso", refere o assessor de imprensa dos CTT, Fernando Marante.

Já o Igespar remeteu todas as explicações para a Direcção Regional de Cultura de Lisboa e Vale do Tejo, que não conseguiu responder em tempo útil. Questionada sobre se o instituto tem nos seus quadros pessoal especializado neste tipo de património, a sua porta-voz, Maria Resende, respondeu: "Não tem nem tinha que ter, na medida em que, sempre que se torna necessário, recorre a outras entidades com técnicos na área em questão."

Fernando Correia de Oliveira lamenta a falta de especialistas na reparação da relojoaria grossa. A meia dúzia que ainda existe fá-lo por tradição familiar ou vem da Marinha, instituição onde os cronómetros nunca deixaram morrer este ofício. Pelas suas contas, mais de metade dos relógios públicos antigos de Lisboa estão parados. Em cima, o relógio da estação dos Correios da Praça D. Luís, da década de 1950. Os CTT dizem que sabem há dois anos que está avariado, mas que não tem arranjo.

(in Público).

1 comentário:

Gastão de Brito e Silva disse...

E assim o tempo vai passando....mais devagar...