O ar que respiramos é mau e a cura tarda em chegar
Carlos Filipe
O ar que respiramos nas nossas cidades não cumpre os parâmetros de qualidade exigidos pelas normas comunitárias, transpostas para a legislação nacional.
As regiões de Lisboa e Vale do Tejo, Porto Litoral, Vale do Ave e Vale do Sousa são as mais problemáticas no que se refere à emissão de partículas inaláveis, e na região centro em Estarreja foi identificada a poluição atmosférica por ozono acima da tolerância máxima, revelam os relatórios das diversas comissões de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR).
O diagnóstico há muito que é conhecido: basicamente, os transportes rodoviários, os aglomerados industriais, a combustão pelas lareiras domésticas e fenómenos atmosféricos são os responsáveis pela ultrapassagem dos valores permitidos. O edifício jurídico português, assente no Decreto-Lei n.º 276/99 e na Directiva-Quadro n.º 96/62/CE, tem sido acrescido de despachos e portarias que definem a política de gestão da qualidade do ar e de planos de melhoria elaborados pelas CCDR.
Só em 2008 e 2009 foram fixados os planos de execução, depois de terem sido definidos pela Comissão Europeia os valores anuais dos níveis de poluentes admissíveis. Os diagnósticos feitos, entre 2001 e 2004, mostraram que os limites eram sistematicamente excedidos. Parcialmente, ainda hoje o são - o que é um problema ambiental e de tempo, porque o país se comprometeu com uma meta de melhoria até 2010 - e esta falhou - e tem agora uma década para recuperar, porque a UE definiu 2020 como o ano do início da tolerância zero.
Diversas equipas universitárias identificaram os problemas e sugeriram propostas de melhoria para mitigar os piores resultados. Outras medidas, de obrigação municipal, tidas como mais simples e imediatas, já estão em curso, ou calendarizadas.
Portagens urbanas
A criação de uma taxa de congestionamento rodoviário na Baixa lisboeta, medida acolhida na legislação portuguesa para o ataque ao problema da excessiva poluição atmosférica em cidades portuguesas, não está no horizonte do pacote de decisões a tomar nesta matéria.
A discussão feita num grupo de trabalho não gerou consenso, e até provocou muita contestação. Os exemplos de Londres, Roma e Amesterdão, cidades que avançaram com portagens urbanas, não colhem receptividade em Portugal. Nem a introdução (mesmo que pontual, em picos de poluição) do sistema de matrículas alternadas em Lisboa - como ocorre na capital grega, Atenas - sobreviveu como ideia a adoptar.
O documento que identifica os problemas na região norte propõe a aplicação desta e de outras medidas nos centros urbanos das cidades com maior nível de tráfego, justificando-se com os benefícios que daí adviriam, tanto pela redução das emissões poluentes, como pelo baixo custo anual em infra-estruturas (vigilância e fiscalização). A título de exemplo, a criação de uma zona de circulação taxada (para veículos individuais de não residentes) no centro do Porto poderia baixar os valores da poluição atmosférica em 1,9 por cento,
Apesar do cenário de incumprimento, notam-se sinais, ainda que pontuais, de melhoria gradual, que é comprovada pelas medições diárias feitas pela Agência Portuguesa do Ambiente para todo o território (http://www.qualar.org), mas a ultrapassagem dos valores-limite, mesmo com margem de tolerância, continua a ser frequente, no que diz respeito aos mais variados poluentes atmosféricos: monóxido de carbono, óxidos de azoto, dióxido de enxofre, ozono. O problema nota-se com particular incidência nas partículas PM10, que têm como principais fontes emissoras o tráfego automóvel, a queima de combustíveis fósseis e as principais actividades industriais, mas também a agricultura, fogos florestais, combustão residencial e acção do vento sobre o solo.
Comissão nega adiamento
O não cumprimento dos valores-limite de PM10 levou o Governo português a solicitar à Comissão Europeia (CE) uma derrogação dos prazos para cumprimento daqueles parâmetros nas regiões de Lisboa e Vale do Tejo, Porto Litoral, vales do Ave e do Sousa. Alegava o executivo português que "a principal causa da superação foi atribuível a características de dispersão específicas [dos locais], condições climáticas desfavoráveis ou factores transfronteiriços". A pretensão foi, porém, negada pela CE, que entendeu não ter sido demonstrado que as violações dos limites, em algumas zonas, são atribuíveis a condições climáticas desfavoráveis [vulgar e comprovadamente atribuíveis a partículas transportadas pelo vento e oriundas do Norte de África, ou por ondas da calor e incêndios florestais]. Porém, a CE também admitiu que em algumas zonas de Portugal poderá cumprir-se os objectivos em 2011, se se executarem plenamente as medidas já propostas.
A associação ambientalista Quercus atribui o incumprimento em Portugal ao facto de "não estarem a ser seguidas uma boa parte das medidas previstas nos Planos de Melhoria da Qualidade do Ar, das regiões norte e Lisboa e Vale do Tejo". Nalguns casos, diz a Quercus, tais planos "não saíram do papel" ou "tardam em ser implementados". Principais causas para a má qualidade do ar, diz esta associação, são o excessivo tráfego automóvel nos centros urbanos, as más políticas de estacionamento, a incipiente transferência da mobilidade individual para os transportes colectivos.
Para a região norte, juntando a estas também o facto de não estarem a ser reduzidas as emissões da combustão residencial (essencialmente lareiras), identificadas como um importante veículo de poluição atmosférica.
Cenário já foi negro
A monitorização constante demonstra que é na Avenida da Liberdade, em Lisboa, onde se centram as maiores preocupações. Os dados de 2009, já validados, revelam que foram ultrapassados os valores-limite de PM10 (acrescido de margem de tolerância) em 92 dias, quando o máximo permitido era de 35 excedências. Já foi bem pior, considerando que em 2005 se verificaram 180 dias para lá do tolerado, e os valores também ultrapassaram o limiar da protecção da saúde humana. O melhor dos últimos cinco anos foi 2008 (80 excedências).
Também a zona de Entrecampos registou, em 2005, 109 excedências, valor que em 2009 se fixou em 29, e portanto abaixo do máximo de 35. Outras medições para o mesmo poluente revelam melhorias sensíveis: em Cascais (Mercado Municipal), quando em 2005 se revelaram 78 dias em excesso, já em 2009 apenas foram contabilizados nove; em Aveiro, para 2005, registaram-se 72 (contra 56 em 2009); nas Antas, Porto, 86/19; no centro de Guimarães, 133/26.
Haverá relação causa-efeito para a melhoria dos resultados das medições, sendo já fruto das políticas e medidas concretizadas, ou resultam de efeito casuístico? Ninguém tem uma resposta completa, com base científica.
Acontece que há menos carros em circulação nos centros urbanos das grandes aglomerações (cidades com mínimo de 50 mil habitantes), mas desconhece-se se por influência do aumento do custo dos combustíveis, pelo aumento da taxa de desemprego, ou outras razões, como medidas de diminuição da poluição.
A oferta de mais estacionamento junto aos interfaces de transportes, a muito baixo preço ou mesmo gratuito, ainda não é uma realidade generalizada. Estas medidas, de efeito dissuasor à circulação nos eixos urbanos, são algumas das preconizadas para a redução do tráfego automóvel, mas também se defende o aumento das tarifas de estacionamento naqueles centros. Será esse o futuro dos habitantes das cidades, mas as alternativas têm registado um crescimento lento. Em Lisboa, por exemplo, a transportadora Carris diz que constatou um aumento do número de passageiros em 2009 face ao ano anterior de apenas 2,6 por cento (dados do último relatório e contas da empresa). Já o Metropolitano de Lisboa verificou um decréscimo de 0,96%, entre 2008 e 2009, no número de passageiros transportados (relatório e contas de 2009).
Mais devagar polui menos
O atraso na concretização de muitas medidas pode ser exemplificado com as chamadas "vias de alta ocupação" (VAO). Era suposto terem passado à fase experimental a meio de 2010 e a realidade é que a CCDR-LVT afirma que os estudos foram adjudicados e que estes deverão avançar em breve. O modelo das VAO beneficiará os automobilistas que se façam acompanhar por um ou mais passageiros, podendo assim circular nas vias destinadas aos transportes públicos. A norte, a CCDR-N subscreve a medida para as zonas urbanas mais críticas da região.
Também as zonas de emissões reduzidas, que preconizam a taxação de pesados de mercadorias e passageiros com antigas motorizações (mais poluentes), são consideradas prioritárias para afastar aqueles veículos dos centros urbanos. A introdução de incentivos à instalação de filtros de partículas nos sistemas de escape dos pesados de mercadorias passou já à fase de testes operacionais. Diz a CCDR-LVT que os resultados são animadores.
Igualmente no pacote das políticas "complexas" está a diferenciação de portagens de acesso às cidades, que seria menos onerosa para as viaturas ligeiras que transportem mais que um passageiro. Uma proposta que visa incentivar a partilha do transporte individual. E porque velocidades menos elevadas provocam reduções do consumo de combustível e de emissões de poluentes por quilómetro percorrido, também a imposição de limites de velocidade mais baixos nas auto-estradas é uma medida a considerar.
Em Roterdão, por exemplo, o limite legal de velocidade numa das auto-estradas baixou de 120 para 80 km/h, o que contribuiu para diminuir a emissão de PM10 entre 25 e 35%. Os planos e programas sustentam sempre que os benefícios para a saúde pública "superam largamente os custos" destas medidas, que deveriam ser "um verdadeiro imperativo nacional". Mas o cenário, mesmo com melhorias, demonstra que o imperativo não foi categórico.
(in Público).
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