quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Histórias do Júlio de Matos.



Hospital Júlio de Matos, 1943. Vista do lado norte. Arquivo Fotográfico da CML

Histórias do Hospital Júlio de Matos

por Gaspar Santos
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O Benemérito e o Empreendor

Conta-se que após o assassinato de psiquiatra Miguel Bombarda, a 3/10/1910, foi chamado a Lisboa Júlio de Matos. Este encontrou no Hospital de Rilhafoles (actual Hospital Miguel Bombarda), o empresário António Higino Salgado de Araújo que aí tinha sido forçadamente internado pelos seus sócios.

Esta insólita estadia de Salgado de Araújo acabou por o sensibilizar para as degradantes condições em que viviam os doentes mentais, levando-o a deixar em testamento ao Estado terrenos para a construção de um novo hospital psiquiátrico.

Se terrenos havia, o que não abundava era dinheiro para realizar a obra. Foi com as escassas verbas do antigo fundo para o tratamento e assistência de alienados, criado em 1875, que se iniciaram os primeiros estudos e em 1913 as obras do então chamado "Novo Manicómio de Lisboa ou do Campo Grande".

A construção do hospital ficou em grande parte, a dever-se ao entusiasmo e influência do psiquiatra Júlio de Matos ( 26/01/1856 -12/4/1922), que acabou justamente por dar o nome ao hospital (1941). Quando morreu os poucos edifícios já construídos estavam ainda ao tosco. A crónica falta de verbas do país arrastou as obras a longo de três décadas.

Uma das cláusulas do testamento de Salgado obrigava que o Estado construísse o hospital antes de 1940. E o Estado assim fez.

Á pressa como sempre, em 1939, fez o muro e concluiu-se o Pavilhão que ficou conhecido como Clínica de Homens e que ostenta uma lápide, em pedra, com o nome Pavilhão Salgado de Araújo.

O HJM só foi oficialmente inaugurado a 2 de Abril de 1942.

Garantido o cumprimento do testamento para que aquela quinta não revertesse para os herdeiros foi sucessivamente construído o hospital, ao mesmo tempo que aquele primeiro Pavilhão foi posto a funcionar.

Arquitectos, Paisagista e Engenheiros

Participaram no HJM vários arquitectos. Leonel Gaia (4/12/1871-1941) concebeu o projecto inicial. A partir de 1933, o arquitecto Carlos Chambers Ramos (1897-1969) assumiu a execução das obras, tendo introduzido importantes modificações. No arranjo paisagista tiveram a colaboração dos professores Caldeira Cabral e Azevedo Gomes.

Nos equipamentos finais participaram o arquitecto Raul Lino e os engenheiros Jácome Castro e Raul Maças Fernandes.

Instalações Hospitalares

Garantido aquele enorme espaço de 22 hectares, o Estado edificou nele sucessivamente segundo um plano de ocupação os vários serviços e pavilhões (33), em geral com dois pisos e uma cave. Um lindo enquadramento paisagístico de arvoredo frondoso, jardins e relvados em torno dos edifícios.

Contudo esta dispersão dos pavilhões e a sua arquitectura não foram isentas de críticas: a dispersão levaria ao aumento da necessidade de recursos humanos para o relacionamento entre serviços e no auxílio em caso de emergências por doente agressivo de noite num pavilhão, sendo assim necessários mais enfermeiros; ao encarecimento de infra-estruturas de gás, água, electricidade e consumos em iluminação do parque, O pé direito de cada sala seria muito elevado o que estaria já ultrapassado mesmo para hospitais psiquiátricos e teria encarecido a construção.

Quem olhava para dentro daquele parque a partir da porta na Av. do Brasil tinha à sua direita os Pavilhões de tratamento de homens e à sua esquerda simetricamente os edifícios para mulheres.

Centralmente estavam de sul para norte o edifício da direcção, secretaria e serviços administrativos bem como o Instituto de Assistência Psiquiátrica e o respectivo Dispensário de Higiene Mental, e na cave a Cantina onde o pessoal se podia abastecer a preços módicos, seguido de edifícios singulares como o Bar do Pessoal, Unidades de meios auxiliares de diagnóstico (Rx, EEG), tratamento de dentes, consulta de clínico geral, etc; residência do Enfermeiro Geral e do jardineiro; residência dos médicos; cozinha e refeitório; Arquivo; Farmácia; Laboratório de análises clínicas; e finalmente os serviços industriais e lavandarias.

Junto à Av. do Brasil a partir do lado nascente, vivenda residência do Director Clínico e do Administrador, Pavilhão de Pensionistas Homens, e simetricamente Pavilhão de Pensionistas Mulheres, Vivenda residência do Director e de outro médico. Mais tarde foi edificado o Pavilhão de tratamento de Alcoólicos Professor António Flores.

Havia ainda serviços de tratamento de crianças o grande “laboratório” de iniciação do Dr. João dos Santos (1913-1987). Este ilustre psiquiatra, logo após se ter formado em medicina, ingressou no HJM em 1945, mas acabou por ser demitido um ano depois pelo regime salazarista. Foi readmitido em 1955, passando a dirigir a secção infantil.

No lado nascente do hospital havia o Pavilhão de Neurocirurgia onde o Professor Almeida Lima (1903 -1985) e seus colaboradores muito operaram na continuação do prémio Nobel Prof. Egas Moniz e onde por vezes fez algumas lobotomias pré frontais.

De referir as residências de enfermeiros e simetricamente de enfermeiras respectivamente a norte das residências referidas. Havia ainda campos de ténis e de futebol de cinco para uso do pessoal e doentes.

Primeiro director

O primeiro director foi o Professor de Neurologia António Flores (1883-1957).

Dado que tinha estagiado na Suíça, considerava que só os enfermeiros daquela nacionalidade teriam competência para iniciar e fazer escola naquela unidade hospitalar. Assim foi. Vieram cerca de 10 enfermeiros entre homens e mulheres, dois ou três com qualidade, mas os outros a fazer só asneiras e com uma formação muito deficiente.

Curiosamente nos anos 60 a migração de enfermeiros foi em sentido contrário para Bélgica, França, Suíça, colónias Africanas e Navio Hospital da pesca do bacalhau.

Encontros Internacionais

O HJM rapidamente passou a ser uma referência a nível plano internacional no estudo das doenças psiquiátricas. Em 1947 foi aqui realizada a I Reunião Europeia de Neurocirurgia e, no ano seguinte, o I Congresso Internacional de Psicocirurgia.

Corpo Clínico e Escola de Eleição

Durante os primeiros anos a Clínica Psiquiátrica (dos doentes mais recentes) servia de suporte nesta especialidade à Faculdade de Medicina de Lisboa, com aulas de prática clínica aos seus alunos com o Prof. Fragoso Mendes (1922- 1981) e Prof. Barahona Fernandes (1907-1992), que tendo a Cátedra de Psiquiatria na FML foi também o 2º Director do HJM (1953-1958).

O HJM teve um corpo clínico de grande saber e dedicação. Desde o Prof. Barahona Fernandes, e Prof. Pedro Polónio, médicos como Jacinto Azevedo Mota, António Esteves, Fragoso Mendes, Seabra Diniz e João dos Santos (dois dos primeiros psicanalistas), Pistachini Galvão, Sousa Gomes, Pompeu e Silva, Almada Araújo, Rosa Falcão, Coimbra de Matos, Luz e Silva, Santiago Quintas (na Guerra colonial para onde foi mobilizado os tropas não diziam vou ao psiquiatra, diziam vou ao Quintas!),. Mas havia excepções como aquele, que não refiro, a quem o porteiro na Av do Brasil levava o livro de ponto para assinar sem sair do automóvel. Também nas análises clínicas havia um notável médico que inclusivamente aperfeiçoou um método expedito de diagnosticar a sífilis quaternária - o Dr. Betencourt Igrejas.

Atraídos pelo saber destes médicos, estagiavam outros vindos de outras faculdades, até de Espanha como foi o caso do Dr. Catalarrana. É a este médico que os médicos residentes ou quando de serviço de turno ocupavam a residência devem agradecer a instalação ali de aquecimento e banho de água quente.

Este estagiário que às vezes tomava o café da manhã em pijama na Nova Lisboa tem uma curiosa estória naquelas reivindicações. O seu Pai, ao contrário dele era um Franquista confesso, uma espécie de Director Geral da Energia, muito rico e possuidor de grande Quinta. Um dia ele disse: vou arranjar-vos aquecimento e água quente. Pediu a uma sua irmã que escrevesse à filha do Administrador do Hospital oferecendo-lhe umas férias na sua quinta. Depois de esta ter recebido o convite ele foi colocar-se no pavilhão central simulando muito frio à passagem como era habitual do administrador. Este perguntou-lhe: Doutor parece estar com frio. Se estou – respondeu – sem aquecimento na residência nem água quente para um banho regenerador como acha que devo estar. Resposta do administrador: vamos já tratar disso. E na verdade três ou quatro dias depois lá estavam os canalizadores na residência dos médicos. E era o Dr. Catalarrana quem dizia, orientando os trabalhadores: ponha um duche aqui, outro ali etc,

Promoção de Funcionários

Nos anos 50 e 60 do século passado, incremento importante de estudantes trabalhadores dentre os enfermeiros donde saíram várias licenciaturas: Adelino Carvalho e Joaquim Caratão em direito, Braúlio de Sousa em medicina e Gaspar Santos em engenharia, e a organização nas instalações do hospital de aulas do ciclo preparatório e do 2º ciclo liceal para outros colegas.



Instituto de Assistência Psiquiátrica

A partir dos anos 50, assistiu-se ao progressivo abandono do tratamento das doenças mentais centradas em grandes hospitais psiquiátricos, passando a defender-se a criação de uma rede de estruturas assistenciais de base comunitária. Os progressos nos psicofarmacos abriram também a possibilidade do tratamento de grande parte dos doentes sem necessidade de permanência nos hospitais. Havia também a necessidade de combater a segregação e marginalização social deos doentes, promovendo a sua inserção na comunidade.

É neste contexto que em 1958, foi criado o Instituto de Assistência Psiquiátrica -IAP (D.L. nº. 41759, de 25/7/1958), com uma vasta missão de coordenação, fiscalização, profiláctica, terapêutica e pedagógica no domínio das doenças mentais. Um novo reforço da intervenção do Estado ocorreu em 1963, quando foi aprovada a Lei da Saúde Mental.

O IAP, cujo primeiro director foi o Dr. Fernando Ilharco (1958-1971), funcionou muitos anos no Pavilhão Central do HJM onde manteve uma Escola de Enfermagem.

O IAP criou por todo o País uma rede de Dispensários de Higiene e Profilaxia Mental e Centros de Higiene Mental Infantil e Juvenil.

A sua acção junto da comunidade, detectando atempadamente e acompanhando as perturbações nas pessoas e o seu tratamento ambulatório, além de uma maior eficácia dos novos fármacos teve como resultado mais remissões de doentes, quase vindo a dispensar os internamentos e o HJM deixou quase de ser necessário, isto é, passou de uma ocupação de 110 % da sua capacidade de internamento para 10 ou 20 %.

Este sucesso clínico levou o Estado a ponderar a venda para outro negócio o parque que constitui o HJM quando era Ministra da Saúde Leonor Beleza (1985-1990).

As vastas instalações do HJM tem sido ao longo dos anos ocupadas por outras entidades públicas: Foi neste processo que foi criado o Parque de Saúde de Lisboa, onde foi integrado o próprio HJM. Mais

"Portas Abertas"

No início dos anos 60 (quando os meios terapêuticos ainda não eram tão eficazes) os doentes agudos eram muitos. Alguns dormiam em camas no chão e passavam o dia dentro de salas. Alguns médicos que fizeram estágios no estrangeiro propuseram o conceito de “ portas abertas” e a Direcção Clínica aceitou e deu instruções para tal que foi uma boa medida.

Grupo de Teatro Terapêutico do HJM

Tudo começou em 1968. Doentes do Centro Cultural Dr. Sousa Gomes, Clube de Doentes do H. J. M., com o apoio de Médicos, convidaram amigos, ligs à área do Teatro, propondo-lhes um projecto com doentes que permitisse levar à cena uma peça de Teatro. A primeira peça chamava-se "ÓLEO", de Eugene O’Neill, fazem-se duas apresentações, em Dezembro de 1968 e Janeiro de 1969. A partir daqui, o Grupo de Teatro Terapêutico nunca mais parou, apesar da escassez dos apoios. Em 2002, levou à cena "SONHOS SEM FREUD", estreada no Grande Auditório de Culturgest.

Exposições e Conferências Culturais
O Hospital Júlio de Matos Com uma programação regular de exposições sobre arte, em geral acompanhadas de importantes ciclos de conferências sobre as mais variadas temáticas.

Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa

Em Novembro de 2007, no meio de uma enorme polémica foi criado o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, integrando o Hospital Júlio de Matos e o Hospital Miguel Bombarda (encerrado).

Gaspar Santos



Directores

Júlio de Matos (1856 -1922). Foi Professor de Psiquiatria na Faculdade de Medicina no Porto, director do Hospital Conde Ferreira também no Porto. Em Lisboa, para onde se mudou em 1911, foi Professor da cadeira de Clínica Psiquiátrica na Faculdade de Medicina e Professor de Psiquiatria Forense no curso superior de Medicina Legal de Lisboa e director do Hospital Miguel Bombarda (1911 -1922).

António Flores (1883-1957). Foi professor de neurologia e psiquiatria na Faculdade de Medicina de Lisboa. Dirigiu o Hospital Miguel Bombarda e depois o Hospital Júlio de Matos.

Barahona Fernandes (1907-1992). Foi professor de psiquiatria e saúde mental na Faculdade de Medicina de Lisboa. Director do HJM entre 1953 e 1958. Foi reitor da Universidade de Lisboa. Publicou uma vasta obra sobre psicologia e psiquiatria.

Luíz Gamito. Director entre 2001-2007.

António Bento. Director do CHPL.

(in Jornal da Praceta).

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