Santos no Júlio de Matos. A marcha deles também é linda
por Marta F. Reis, Publicado em 30 de Junho de 2011.
Exercício físico e dieta passaram a fazer parte da rotina no hospital psiquiátrico. Ontem houve sardinhas e arcos
Vera tem 30 anos e está a aprender a controlar a impulsividade 1/1 + fotogalería .Vera dá a mão ainda antes de dizer o nome. Não marcha desde pequena, daquela vez no colégio em Sete Rios. Tem 30 anos e era cozinheira até a doença que não sabe explicar lhe suspender a vida lá fora. Faltam poucos minutos para o início da festa e é preciso ir buscar os arcos ao pavilhão, alinhar os pares, acertar os passinhos, resolver quem pode ou não ir assistir. A música é a única forma de encontrar o caminho de ida e volta no labirinto de ruas que ligam os pavilhões do Hospital Júlio de Matos, em Lisboa. À porta da sala de convívio vendem-se churros e há uma pequena agitação de doentes, técnicos e familiares à espera de quem vai desfilar. Pequena, porque a calma de tudo o resto é abafadora - custa imaginar que ali estão internadas 250 pessoas, algumas há décadas.
O programa Viver em Equilíbrio, que trouxe ao hospital quase septuagenário formações sobre alimentação saudável e exercício físico, caminha para os dois anos. Ontem foi dia de experimentar uma modalidade nova, a marcha popular, em jeito de festa dos Santos. Também isto é terapia psicossocial, diz ao i o coordenador Paulo Rocha. A participação é voluntária e se durante a manhã chamou 120 doentes a uma aula de exercício ao ar livre, à tarde são menos os que participam na marcha, seguida de fado e bailarico. Vieram os doentes mais estáveis, os que fazem terapia ocupacional e representantes das chamadas unidades de vida, residências com maior autonomia para quem não têm possibilidades socioeconómicas para ser desinstitucionalizados. Ainda assim, quase todos são "de evolução prolongada", corrige o enfermeiro Simões quando dizemos crónicos. Esquizofrenias, doença bipolar, depressões, demência e debilidades mentais.
O mote é combater o aumento da peso, para que contribui a medicação e o sedentarismo, e preparar um regresso saudável a casa. Além das aulas sobre alimentação, que finalmente fizeram com que as saladas não viessem sempre devolvidas, todos os dias fazem caminhadas de 20 a 30 minutos em grupos de dez, da avenida do Brasil ao jardim do Campo Grande. Na marcha participam alguns dos caminhantes diários. Os preparativos começaram há um mês, mas os fatos são os do dia-a-dia. Os arcos têm manjericos feitos em papel celofane e há os estandartes das unidades de vida, a Casa de Santa Rita, a Casa das Tílias. Perto do armazém o volume da música aumenta e ouve-se um enrolado mas convicto "lá vai Lisboa com seu arquinho e balão."
Vera alinha com Rodolfo, 26 anos, surdo-mudo. Ela tem um distúrbio de personalidade, uma tendência para a impulsividade. Ele tem uma debilidade mental, que nos explicam ter piorado em parte depois de uma infância com pais ausentes, poucas regras, pouco apoio. Vão lado a lado e não trocam palavra. Ela de olhos em lado nenhum, capaz de dizer que os dias são quase sempre tristes, que tem um namorado que talvez apareça mas que só gosta dela "um bocado assim" - enquanto aponta meio dedo - e que a irmã nem sempre pode vir por causa da mãe acamada. Ele excitado mas preso na incapacidade de falar mais, na dificuldade de dizer a idade sem ser a escrever no caderno "1985", apressado a tentar corrigir quando confundimos o nome Rodolfo dito como sabe com um Hugo que não é ele, atiradiço nos beijos.
São doentes assim tão diferentes ou ainda mais ainda que partilham a residência de psiquiatria 1, de onde sai o maior braço de doentes da marcha. É um dos quatro serviços para doentes de evolução prolongada a que se juntam outras quatro de "agudos", situações de crise. Não estão separados por doenças ou idades mas por área de residência. Chegam primeiro para um internamento até 15 dias e depois, se não for possível ou conveniente a desinstitucionalização, ficam pelo tempo que for necessário.
Se podia fazer sentido pensar em separações por doenças, os enfermeiros explicam que as fronteiras nem sempre são claras e uma mesma situação pode acumular várias. Pior é serem "poucos": ali são dois enfermeiros por turno mais outros tantos auxiliares para 52 doentes. E o apoio que é exigente e tem de ser personalizado, porque são doentes "difíceis, inertes, contrariantes", acaba por não poder ser perfeito, dizem os dois enfermeiros do turno, que não assistem à marcha por terem de ficar com os que mais fracos ou instáveis.
Ricardo, que disputa as atenções com Rodolfo, é um exemplo de quem já poderia estar a ter um acompanhamento diferente. "Só precisava de um sítio onde pudesse ir ganhando autonomia, alguém que lhe desse apoio", explica o enfermeiro Pedro. Também é surdo-mudo e chegou agressivo ao hospital. Passaram cinco anos e ainda não foi possível transferi-lo para uma residência
Nas conversas entrecortadas pela cabeça e pelas exigências da marcha contam que o almoço foram sardinhas, batatas e churros. Mais sorte que nós, rimos. José Augusto, que apanhamos no braço da terapia ocupacional, estremece quando ouve a palavra depressão e diz terminantemente que era doença que não devia existir. Tem 42 anos e aos 51 quer ter "um projecto de vida". O rosto inunda-se só da intenção. Em tempos de crise, juntam-se à histórias de sempre mais crises de pânico e ansiedade e muitas também vêm ter ali, explica Paulo Rocha.
Depois de voltas no largo, entram dentro da sala e alguém grita a marcha é linda. É hora de fado e faz-se de forma espontânea o silêncio socialmente correcto. "O nosso amor começou na berma da minha rua. Quando o S. Pedro chegou eras meu e eu tua", canta a fadista. José Augusto balança feliz fora dos acordes. Pergunto a Vera pelo namorado e ele está sentado ao lado. Faz questão de apresentar e digo "muito prazer". Os afectos fazem parte da terapia.
(jornal «i»).
Vera tem 30 anos e está a aprender a controlar a impulsividade 1/1 + fotogalería .Vera dá a mão ainda antes de dizer o nome. Não marcha desde pequena, daquela vez no colégio em Sete Rios. Tem 30 anos e era cozinheira até a doença que não sabe explicar lhe suspender a vida lá fora. Faltam poucos minutos para o início da festa e é preciso ir buscar os arcos ao pavilhão, alinhar os pares, acertar os passinhos, resolver quem pode ou não ir assistir. A música é a única forma de encontrar o caminho de ida e volta no labirinto de ruas que ligam os pavilhões do Hospital Júlio de Matos, em Lisboa. À porta da sala de convívio vendem-se churros e há uma pequena agitação de doentes, técnicos e familiares à espera de quem vai desfilar. Pequena, porque a calma de tudo o resto é abafadora - custa imaginar que ali estão internadas 250 pessoas, algumas há décadas.
O programa Viver em Equilíbrio, que trouxe ao hospital quase septuagenário formações sobre alimentação saudável e exercício físico, caminha para os dois anos. Ontem foi dia de experimentar uma modalidade nova, a marcha popular, em jeito de festa dos Santos. Também isto é terapia psicossocial, diz ao i o coordenador Paulo Rocha. A participação é voluntária e se durante a manhã chamou 120 doentes a uma aula de exercício ao ar livre, à tarde são menos os que participam na marcha, seguida de fado e bailarico. Vieram os doentes mais estáveis, os que fazem terapia ocupacional e representantes das chamadas unidades de vida, residências com maior autonomia para quem não têm possibilidades socioeconómicas para ser desinstitucionalizados. Ainda assim, quase todos são "de evolução prolongada", corrige o enfermeiro Simões quando dizemos crónicos. Esquizofrenias, doença bipolar, depressões, demência e debilidades mentais.
O mote é combater o aumento da peso, para que contribui a medicação e o sedentarismo, e preparar um regresso saudável a casa. Além das aulas sobre alimentação, que finalmente fizeram com que as saladas não viessem sempre devolvidas, todos os dias fazem caminhadas de 20 a 30 minutos em grupos de dez, da avenida do Brasil ao jardim do Campo Grande. Na marcha participam alguns dos caminhantes diários. Os preparativos começaram há um mês, mas os fatos são os do dia-a-dia. Os arcos têm manjericos feitos em papel celofane e há os estandartes das unidades de vida, a Casa de Santa Rita, a Casa das Tílias. Perto do armazém o volume da música aumenta e ouve-se um enrolado mas convicto "lá vai Lisboa com seu arquinho e balão."
Vera alinha com Rodolfo, 26 anos, surdo-mudo. Ela tem um distúrbio de personalidade, uma tendência para a impulsividade. Ele tem uma debilidade mental, que nos explicam ter piorado em parte depois de uma infância com pais ausentes, poucas regras, pouco apoio. Vão lado a lado e não trocam palavra. Ela de olhos em lado nenhum, capaz de dizer que os dias são quase sempre tristes, que tem um namorado que talvez apareça mas que só gosta dela "um bocado assim" - enquanto aponta meio dedo - e que a irmã nem sempre pode vir por causa da mãe acamada. Ele excitado mas preso na incapacidade de falar mais, na dificuldade de dizer a idade sem ser a escrever no caderno "1985", apressado a tentar corrigir quando confundimos o nome Rodolfo dito como sabe com um Hugo que não é ele, atiradiço nos beijos.
São doentes assim tão diferentes ou ainda mais ainda que partilham a residência de psiquiatria 1, de onde sai o maior braço de doentes da marcha. É um dos quatro serviços para doentes de evolução prolongada a que se juntam outras quatro de "agudos", situações de crise. Não estão separados por doenças ou idades mas por área de residência. Chegam primeiro para um internamento até 15 dias e depois, se não for possível ou conveniente a desinstitucionalização, ficam pelo tempo que for necessário.
Se podia fazer sentido pensar em separações por doenças, os enfermeiros explicam que as fronteiras nem sempre são claras e uma mesma situação pode acumular várias. Pior é serem "poucos": ali são dois enfermeiros por turno mais outros tantos auxiliares para 52 doentes. E o apoio que é exigente e tem de ser personalizado, porque são doentes "difíceis, inertes, contrariantes", acaba por não poder ser perfeito, dizem os dois enfermeiros do turno, que não assistem à marcha por terem de ficar com os que mais fracos ou instáveis.
Ricardo, que disputa as atenções com Rodolfo, é um exemplo de quem já poderia estar a ter um acompanhamento diferente. "Só precisava de um sítio onde pudesse ir ganhando autonomia, alguém que lhe desse apoio", explica o enfermeiro Pedro. Também é surdo-mudo e chegou agressivo ao hospital. Passaram cinco anos e ainda não foi possível transferi-lo para uma residência
Nas conversas entrecortadas pela cabeça e pelas exigências da marcha contam que o almoço foram sardinhas, batatas e churros. Mais sorte que nós, rimos. José Augusto, que apanhamos no braço da terapia ocupacional, estremece quando ouve a palavra depressão e diz terminantemente que era doença que não devia existir. Tem 42 anos e aos 51 quer ter "um projecto de vida". O rosto inunda-se só da intenção. Em tempos de crise, juntam-se à histórias de sempre mais crises de pânico e ansiedade e muitas também vêm ter ali, explica Paulo Rocha.
Depois de voltas no largo, entram dentro da sala e alguém grita a marcha é linda. É hora de fado e faz-se de forma espontânea o silêncio socialmente correcto. "O nosso amor começou na berma da minha rua. Quando o S. Pedro chegou eras meu e eu tua", canta a fadista. José Augusto balança feliz fora dos acordes. Pergunto a Vera pelo namorado e ele está sentado ao lado. Faz questão de apresentar e digo "muito prazer". Os afectos fazem parte da terapia.
(jornal «i»).
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