segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

A Lapónia fica na Baixa.





A Lapónia fica na Baixa e o Pai Natal chama-se João
por Clara Silva
Anda de metro, é campeão de pesca, entrega presentes em casa de futebolistas por 200 euros à hora e é o homem mais solicitado da quadra. O i passou o dia com o Pai Natal João
Aviso: a leitura deste texto está interdita a crianças que costumam receber presentes das mãos de tios mascarados com barbas falsas compradas nos chineses e a adultos que ainda acreditam que os presentes são importados da Lapónia.

O Pai Natal não existe. Mas se existisse morava na Baixa de Lisboa e não no Norte da Europa, como nos enganaram. Para testar esta teoria basta perguntar nos cafés e lojas perto da Rua Augusta pelo Pai Natal. O mais provável é indicarem-lhe João Gomes Ferreira, de 74 anos, Pai Natal há mais de 40. "Também sou conhecido aqui por John porque quando era novo era muito loirinho", conta-nos João, na sala de estar da sua casa perto da Rua da Madalena. Mesmo sem o fato vermelho e o barrete que costuma usar sentado num trono no último piso do El Corte Inglés é parecido com o Pai Natal. Tem um ar afável, olhos azuis e uma barba mimada todos os dias com amaciador, capaz de fazer inveja aos pais natais dos centros comerciais pelo mundo fora. "Já fui eleito por uma revista o quarto melhor Pai Natal da Europa", orgulha-se. "Mas nem sei bem qual, um casal de holandeses é que me contou."

Desengane-se quem pensa que o Pai Natal mora numa casa cheia de brinquedos e elfos atarefados. Na sala onde João nos recebe de manhã não há árvore de Natal nem brinquedos à vista, apenas uns doces que costuma pôr nos bolsos antes de sair de casa - "para se os miúdos me reconhecerem e pedirem" -, bibelôs que a sua mulher colecciona e várias taças e medalhas em cima de um móvel antigo. "São coisas que ganhei na pesca. É um dos meus passatempos."

De estrela a sem-abrigo

Como o seu turno de Pai Natal do El Corte Inglés só começa às quatro e meia da tarde, tem tempo para nos mostrar os três dossiês carregados de recortes de jornais e revistas onde apareceu nos últimos 20 anos ao lado de famosos como Bárbara Guimarães, Catarina Furtado e outras dezenas de caras conhecidas. No mesmo álbum tem também fotografias da neta com quem passa a noite de Natal. Sim, afinal o Pai Natal tem folga nessa noite para estar com a família e não anda por aí a entregar presentes que nem um louco. Aliás, teve tempo para entregá-los antes: "Comecei a 26 de Novembro e este ano até foi mais tarde do que o habitual." Além do trabalho no centro comercial, também distribui presentes em casa de clientes particulares, a quem cobra 200 horas por hora. "Acho que mereço esse valor porque faço as coisas com profissionalismo." Este ano teve quatro clientes, "um deles um jogador de futebol e outro um deputado".

Foi o Pai Natal da Worten durante cinco anos e já gravou anúncios de empresas como a Optimus, Feira Nova, Millennium, Sumol e BES, ao lado de Cristiano Ronaldo. "Estou inscrito em agências de figuração e durante o ano chamam-me para várias coisas." O visual permite-lhe fazer papéis diferentes. "Na série ''Inspector Max'' fui sem-abrigo e também já me convidaram para ir a Espanha fazer de Cristovão Colombo."

Depois de almoçar com a mulher e o filho, João costuma passar no café "O Buraco", na Baixa. "É do Manolo, um gajo bacano, podemos ir lá se quiserem." Assim que saímos do seu prédio, um rapaz grita-lhe: "Então, Pai Natal, estou à espera da prenda!" Pelo caminho, alguns vizinhos têm abordagens semelhantes e no café todos os conhecem. "Ele costuma sentar-se naquela mesa todos os dias", diz Manolo, o dono, enquanto aponta para um papel onde se lê "Reservado ao Pai Natal". "É aqui que o meu grupo se junta para comer e beber uns copos: um vendedor de camisas, dois farmacêuticos, outro Pai Natal..."

O metro é o novo trenó

Perto da três da tarde, João apanha o metro nos Restauradores (não tem carta de condução nem renas), perto da praça onde se iniciou na carreira de Pai Natal. "Foi há uns 40 anos. Fui para a rua com um fotógrafo e um burro. Dávamos um balão aos miúdos e as fotos saíam numa polaróide", recorda. "Entretanto o burro morreu e isso acabou. Só quando me reformei é que me dediquei mesmo a isto. Até lá não parei." João foi desenhador no Laboratório Nacional de Engenharia Civil, vendedor de roupa, fez tratamento de metais e trabalhou na secretaria do Lisboa Ginásio.

Na viagem de metro pela linha azul ninguém o reconhece. Assim que chega ao El Corte Inglés equipa-se na casa-de-banho - "não uso botas, magoam-me os pés, prefiro sapatos com uma fivela dourada" - e sobe ao último piso, onde troca de turno com o colega que entrou às onze. "Já trabalhamos juntos há 20 anos e combinamos os horários. Inaugurámos o Colombo e aquilo era o pandemónio, só num fim-de-semana tirávamos mil fotografias." Agora, já não se tiram tantas. "Qualquer um com um telemóvel com câmara faz uma de longe."

Ao seu lado, o Pai Natal João tem uma caixa de correio onde os miúdos deixam as cartas. "Já deve estar quase cheia. Eles recortam os brinquedos dos catálogos com o preço e colam-nos numa folha." Em 2009, o brinquedo mais pedido foi a PS3. "Este ano anda para aí uma novidade qualquer que os putos querem todos, mas não me lembro do nome", diz. Em casa, tem um catálogo onde se mantém a par das novidades de brinquedos - "mas há tanta coisa que nem consigo estar actualizado". O pedido mais original de presente que teve aconteceu este ano: "Um miúdo pediu-me um dentinho, porque o dele tinha caído."

(in jornal «i»).

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