sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Adeus.



Mágoa em Lisboa pela morte do "Senhor do Adeus", o homem que quis espantar a solidão
Por Ana Henriques

Acenava todas as noites aos automobilistas entre as Picoas e o Saldanha e a sua morte comoveu milhares de pessoas. Há quem queira erguer-lhe uma estátua

Mais de cem pessoas acenaram na última despedida

Lágrimas a estragar-lhe a pintura dos olhos, Mafalda Pinto aproxima-se da esquina do Saldanha com a Fontes Pereira de Melo. Baixa-se e deposita o discreto ramo de flores lilás junto ao semáforo. É o primeiro, ainda ali não há mais flores nenhumas. "Via-o aqui quase todas as noites, quando ficava a trabalhar até tarde. O pior é que nunca falei de nada importante com ele. "

Nem Mafalda, nem a maioria dos automobilistas que, ao longo dos últimos dez anos, respondiam com uma apitadela aos acenos e ao sorriso de João Manuel Serra, o homem que matava a solidão da noite - "uma malvada", que o "perseguia por entre as paredes vazias da casa" - a saudar quem passava. Mas quando morreu, com 80 anos, o "Senhor do Adeus", como ficou conhecido, tinha-se tornado um ícone da capital, com os seus óculos de massa escura, cabelos brancos e porte aristocrático.

A real dimensão da sua popularidade só ficou conhecida ontem, quando uma página criada em sua memória no Facebook juntou, em poucas horas, mais de 5000 pessoas a lamentarem o seu desaparecimento - eram 7757 à hora do fecho desta edição. Foi na Internet que surgiu a ideia de fazer, ontem à noite, uma cerimónia naquela esquina do Saldanha e também se reivindicou que seja erguida uma estátua ao excêntrico senhor nascido em berço de ouro ali mesmo ao lado, numa casa apalaçada das Picoas.

Filho de diplomata, gabava-se de nunca ter trabalhado na vida. Não precisava, vivia dos rendimentos. Viajou mundo fora com aquela a que chamava a paixão da sua vida: a mãe. Moravam juntos num prédio antigo nas Laranjeiras e, quando ela morreu, tinha ele 65 anos, ficou "desasado". Até que percebeu que havia quem lhe buzinasse e acenasse durante os seus passeios solitários pela cidade durante a noite. Decidiu pensar que eram novos amigos. "Comecei a acenar às pessoas em vários pontos da cidade. Depois decidi que era nas Picoas que me sentia melhor. Passei a minha infância aqui", contou ao PÚBLICO, em 2001.

Fez mesmo amigos de verdade. Ana Griffo Coimbra, uma gestora de 59 anos, foi uma delas. Costumava ir jantar às terças-feiras para aqueles lados com a família e as conversas prolongadas com o "Nini", como carinhosamente o tratavam, tornaram-se um hábito. Com algumas obras publicadas, a mãe dela fez-lhe um poema. E à terça-feira lá estava ele, rosa na mão para entregar à poetisa, e um "ovo Kinder Surpresa" na outra, para o neto. ""Eu preciso disto, é o meu remédio, mas as pessoas que me cumprimentam também precisam de mim", costumava ele dizer"", recorda Ana Coimbra. "Era uma pessoa muito terna e bem-educada."

Dizia ser o "Senhor do Olá"

Nem a chuva o afastava desta missão, que, nos últimos tempos, se alargou ao Restelo, onde passou a ir almoçar a casa de um irmão. "Havia quem o chamasse maluco, mas ele dizia que não se importava", conta Ana Coimbra. Do que não gostava muito era que o chamassem "Senhor do Adeus": preferia ser conhecido como "Senhor do Olá".

O realizador Filipe Melo convidou-o para entrar na sua primeira curta-metragem. Há vários anos que tinham, juntamente com outro amigo, um ritual semanal: ir ao cinema ao domingo e jantar a seguir no Galeto. "Era genuinamente boa pessoa", diz o cineasta. Assim sucedeu no último domingo: foram ver o filme sobre o fundador do Facebook e, como era hábito, Filipe Melo transcreveu as impressões do amigo no blogue que criara para ele (http://senhordoadeus.blogs.sapo.pt). Apesar de a época festiva ainda vir longe, no final da crítica o "Senhor do Adeus" desejava bom Natal aos leitores. "E estejam todos muito felizes", acrescentou. "Penso que morreu nessa noite, de ataque cardíaco, depois de eu o pôr em casa", explica Filipe Melo, que conheceu o "Senhor do Adeus" na rua. Antes de partir, João Manuel Serra ainda teve tempo de participar noutros projectos de Filipe Melo e de servir de inspiração a um fado cantado por Carlos do Carmo. Ainda assinava uma rubrica de cinema no canal Q.

Pedro Santana Lopes também o conhecia da Figueira, local onde o "Senhor do Adeus" passava férias. Viu-o no sábado pela última vez, ia a passar no Rato. "Vieram-me as lágrimas aos olhos quando soube da notícia. Lisboa fica mais triste, porque ele era uma fonte de alegria. Apetece fazer-lhe uma estátua, ou talvez outra coisa qualquer menos estática... Devia ser um símbolo eterno na cidade."

Porquê tanta admiração por este homem que se limitava a dizer adeus e a sorrir a quem passava? "Era o símbolo de uma cidade mais humana, menos impessoal", responde Filipe Melo. Depois de depositar as flores lilás no semáforo, Mafalda Pinto diz algo semelhante: "Era um caso exemplar da vida urbana: uma pessoa muito só e ao mesmo tempo acompanhada por uma multidão."

A pedido da família, as cerimónias fúnebres serão privadas.

(Público).

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