sexta-feira, 5 de junho de 2009

O Nietzsche era um grande palhaço.


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Portugal é um país feito de «casos». Parece que não podemos viver sem eles. Que caso nos trará o acaso da próxima semana? Ele é o caso D. Branca, o caso Beleza, o caso Pedro Caldeira, o caso Apito Dourado, o caso Vale e Azevedo, o caso Passerelle, o caso BPN, o caso Freeport, o caso Casa Pia, o caso da menina russa que não me alembra o nome, o caso Moderna, o caso Joana, o caso Leonor Cipriano, o caso McCann. Vários casos têm a virtude de se desdobrar noutros casos: o caso MacCann, por exemplo, gerou o caso Gonçalo Amaral. O caso Leonor Beleza desaguou no caso Zézé Beleza. E por aí fora. Em biologia, isso chama-se cissiparidade. Em português do Poço dos Negros, chama-se pouca-vergonha. Nesta campanha eleitoral que agora finda, houve vários casos, a começar pelo caso de se saber se foram ou não ao prateado penteado do doutor Vital Moreira. Nós, portugueses, adoramos a casuística. Talvez porque saibamos que é um desporto inconsequente, como as discussões escolásticas da Idade Média. Um caso é isso mesmo: um caso. Nunca passará desse estádio evolutivo, para gáudio das correntes criacionistas. Um caso nunca dará um processo judicial com pés e cabeça, que vá até ao fim, por exemplo. Um caso é um caso. Marinho Pinto, só por si, é um caso. Não é um Bastonário, é um caso. Como Manuela Moura Guedes não é uma jornalista, é um caso. O futebol inteiro é um caso do tamanho de vários estádios de betão. Valentim Loureiro não é um homem, é um caso de cenho carregado, voz tonitruante e dedo em riste. Enfim, fiquemo-nos por aqui, não vá rebentar o caso Lisboa SOS...
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O «Moinho de S. Bento» é o caso Lisboa SOS da semana, que aqui lhe trazemos nesta sexta-feira pré-eleitoral. Somos mesmo um blogue «engraçado». Inofensivo e dócil, o Moinho está aqui, no Poço dos Negros, há várias décadas. 73 anos. O Moinho de S. Bento tem o bom senso, que só a sabedoria dos antigos permite, de se estar perfeitamente nas tintas para José Manuel Durão Barroso ou Paulo Sacadura Cabral Portas. Todos os casos do país, que abalam esta pátria quási milenar, são agrupados numa vaga, difusa e distante categoria: «eles». Os casos são coisas «lá deles». E o mundo «deles» não é o mundo do Moinho de S. Bento, coisa que o Moinho de S. Bento aceita e agradece com bonomia e ternura. Com a altivez dos simples. Talvez alguns dos clientes do Moinho de S. Bento gostassem de ter um «caso» com a senhorita Cláudia Vieira ou com a menina Soraia Chaves. Para os mais entradotes, marchava a Florbela Queirós ou, ele há quem goste, a Dona Simone Oliveira. Madalena Iglésias, quiçá.
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Este sim, é um caso. João Mouraria. Os pretos deviam era ir todos lá para a terra deles. João Mouraria nasceu em Alfama. Foi baptizado na Igreja de Santo Estêvão. Devia ir para a terra dele? Está bem, é só subir a Calçada do Combro, passar pelo Chiado, descer a Calçada de São Francisco, um pouco da pombalina Baixa e lá estaria João Mouraria na terra dele. Mas João Mouraria vive num albergue, no Poço dos Negros. Diz-me que canta o fado. E eu não tenho razões para deixar de acreditar nele. Tenho até mais razões para acreditar nele do que em João António de Araújo Vale e Azevedo. Esse é que não há meio de o trazerem para a terra dele.
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Mais dois personagens desta história lisboeta, efémera como o são os «posts» deste blogue despretencioso e patusco. Atrás do balcão, o Sr. António, proprietário e sócio-gerente da «holding» Moinho de Vento, SGPS. Em primeiro plano, Dona Júlia, oitenta e muitos, que surgiu nesta história (rectius: neste caso) apenas para tomar o café das 11h e comer um bolinho.
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João Mouraria não trabalha. Ou, melhor, não tem um emprego convencional. O engº José Sócrates Pinto de Sousa também não tem um emprego convencional. Ser Primeiro-Ministro não é um emprego, pois não? É um cargo, uma função. Pois ser João Mouraria também é um cargo. Não é João Mouraria quem quer. Só João Mouraria poderia ser João Mouraria. Conta-me que estão a fazer um filme sobre ele, rodado em Alfama e no Poço dos Negros. Não duvido. Acredito em João Mouraria. Ele, ao menos, está ao pé de mim para me contar a sua vida. Conta-me que a Rua da Boavista se chama da Boavista porque as águas de S. Paulo, dizia-se, faziam bem aos olhos. Rezar ao São Nuno Álvares Pereira também parece que faz bem aos olhos, diz a Sagrada Congregação do nosso Cardeal Saraiva Martins (o Cardeal Saraiva Martins, Cristiano Ronaldo e o cão-de-água de Obama são, ao que parece, os nossos principais produtos de exportação). Pois se há gente que acredita em milagres, eu acredito no João Mouraria. Só duvido, de quando em quando, que Vale e Azevedo regresse um dia a Portugal. Ou que haja algum condenado no processo Casa Pia. Disso, duvido. Em João, acredito.
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Pois se João Mouraria até mete açúcar e mexe o cafézinho da D. Júlia. Não estou a ver o nosso Ministro da Cultura, o irresistível «charmeur» doutor José António Pinto Ribeiro, a remexer o café da Dona Júlia. Mais depressa acredito nos milagres do Beato Nuno.
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Dona Júlia, que de início se mostrou recalcitrante em ser fotografada, acabou por revelar uma naturalidade frente às objectivas da nossa equipa de reportagem que faria inveja a muita «top-model». Carla Matadinho, Rita Pereira, Diana Chaves, vá, meninas, ponham os olhos na Dona Júlia. Tomara vocês todas chegarem à idade dela com esta boa disposição matinal. Vá, meninas, atenção à Dona Júlia. Lá vem no Evangelho: Em verdade, em verdade vos digo: se seguirdes o exemplo desta mulher da Cesareia, em breve largareis o Prozac (Lucas 17, 1-2).
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Tomara vocês terem oitenta e muitos e brincarem com o João Mouraria, numa manhã de sol radioso.
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Olhem a ternura com que João Mouraria observa Dona Júlia. São coisas destas que fazem Lisboa uma cidade diferente de Copenhaga ou Estocolmo. Sim, porque quanto a asseio urbano e conservação do edificado, nós vamos muito à frente.
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O Moinho de S. Bento é uma casa de cafés, de várias proveniências e sabores. Mas também serve vinho a copo. Tinto.
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João Mouraria, esse copo já ninguém te o tira. A segui mostrar-me-ás a oficina do Custódio, que aqui eu mostrarei um dia. Quanto te perguntei se te podia fotografar, respondeste: «À vontade, não tenho nada a esconder». Sorte a tua.
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Havia uns tipos que falavam em lusotropicalismo. Agora outros falam de multiculturalismo. Até se fazem colóquios sobre isso. Pois aqui, os colóquios são dos simples. João Mouraria pede um copo de vinho e o António do Moinho de S. Bento serve-lhe um copo de vinho. Como estava um patego do Lisboa SOS com uma câmara fotográfica, dão um aperto de mão para ficar bem na foto. As simples as that. Não há que fazer um caso deste caso.
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O Sr. António, um homem calmo, tranquilo, um pouco reservado. Aos poucos, vai-se abrindo, contando a sua história. Porque nós não temos uma vida, temos uma história. Às vezes, a história da nossa vida não é aquela que gostaríamos que fosse. Mas gostamos de estar vivos para ter uma história. Mesmo que a história que temos não seja exactamente aquela que desejaríamos ter. Mas entre estar vivo e passar à história, preferimos a primeira opção. Por isso, no fundo, gostamos da história de vida que temos. E o resto é conversa. Conversa de café.
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No dia em que tirei estas fotografias, caiu um avião no Brasil e morreu toda a gente.
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1 comentário:

Anónimo disse...

Texto e fotos muito patuscos e engraçados!
Super impecável!